Ameaça à segurança da população civil maliana frente às ações do Grupo Wagner
Por Diogo Procópio Spadotto
Com uma independência recente, a história do Mali após a libertação dos colonos franceses, em 1960, é marcada por uma série de conflitos internos que possuem uma trajetória complexa. Esse Estado, localizado no interior da África Ocidental na região do Sahel, é caracterizado pelo conflito do governo nacional contra os Tuaregue, um povo nômade e de minoria étnica situado no norte do país, em uma região denominada Azawad. O conflito se desenrola desde a independência, e ganhou destaque na mídia global em 2012, quando um novo grupo de insurgentes, o Movimento Nacional pela Libertação de Azawad (MNLA), deu início à quarta rebelião tuaregue e tomou o controle da região norte, proclamando, unilateralmente, a independência de Azawad (DUARTE, 2013).
Neste período, a fim de garantir os objetivos e perpetuar a independência do norte, o MNLA se aliou ao grupo islâmico radical Ansar Dine, que possui ligações com uma divisão da Al Qaeda e do Movimento para a Unidade e a Jihad na África Ocidental (MUJAO). Em virtude da vulnerabilidade da situação, em 2013 a França e outros atores internacionais entraram no conflito com o intuito de combater a ameaça terrorista (DUARTE, 2013).
Atualmente, após mais de uma década, o conflito do governo do Mali contra os grupos terroristas continua sem resolução. O cenário visto hoje no Mali é de um governo fragmentado por dois golpes de Estado consecutivos, que atua com uma postura populista e antiocidental, alienando seus parceiros tradicionais no combate contra os jihadistas em troca do apoio de uma empresa militar russa, de segurança privada, denominada Grupo Wagner (CRISIS GROUP, Mali, 2022).
Por consequência disso, as relações entre o Mali e os parceiros europeus agravaram-se rapidamente, em conjunto com a crescente tendência de baixas civis nos conflitos assistidos pelos mercenários do Grupo Wagner. Esse contexto nos leva à seguinte pergunta: de que forma as atuações do Grupo Wagner, no Mali, em conjunto com o governo contra grupos insurgentes e terroristas, ameaçam a segurança da população civil nessa fase do conflito?
ISOLAMENTO DE PARCEIROS TRADICIONAIS E O GRUPO WAGNER
Em agosto de 2021, os oficiais militares do governo de Bamako, capital do Mali, proclamaram o segundo golpe de Estado em um período de 2 anos. A justificativa para tal foi um conflito de interesses entre os funcionários civis do governo e os militares. Dado isso, o coronel Assimi Goïta foi instalado como novo presidente interino e Choguel Kokalla Maïga assumiu o cargo de novo Primeiro-Ministro. Esse último foi responsável por explorar e conduzir um sentimento antifrancês na população maliana, derivado de várias reclamações ao longo dos anos da presença militar no país (CRISIS GROUP, Mali, 2022).
Dessa forma o novo governo assumiu uma postura populista e antiocidental, acarretando em diversos confrontos verbais, que levaram o Mali a uma rota de colisão e alienação de seus parceiros ocidentais e regionais. Por esse ângulo, as atitudes tomadas por Bamako, como, a prorrogação das eleições – previstas para fevereiro de 2022 – para daqui a 5 anos, a expulsão do embaixador francês, junto com a atribuição da deterioração na segurança do país à Operação Barkhane – campanha militar francesa contra os insurgentes – e várias outras medidas antidemocráticas, corroboram para o estreitamento de laços com parceiros tradicionais (CRISIS GROUP, Mali, 2022). Em razão de tais atitudes a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) aplicou restrições comerciais ao Mali, e a França e outros Estados membros da União Europeia retiraram suas tropas do conflito, com exceção das tropas destacadas na MINUSMA, uma operação de peace enforcement da ONU, com o objetivo de impor a paz para estabilizar o país (DUARTE; ANDRADE; SOUZA; BALESTRINI, 2019).
Dito isso, em meio a essa fase complexa do conflito, o governo do Mali optou por diversificar as parcerias, trazendo a empresa de segurança privada Wagner e seus soldados mercenários para combater os grupos rebeldes e terroristas. Produzindo assim uma maior instabilidade e vulnerabilidade entre os atores, que ficou evidente após os soldados russos, em trajes militares camuflados, serem avistados chegando às bases militares de Bamako.
O Grupo Wagner é uma empresa militar russa de segurança privada, que faz parte de um segmento empresarial denominado PMC (Private Military Contractors), sendo uma das empresas mais conhecidas e prolíficas nesse ramo (CARBONE; LAY; NSAIBIA; SERWAT, 2022). Entretanto, informações detalhadas sobre o grupo são raras pois a empresa em si não existe oficialmente. Em razão disso, como não há registros concretos de suas atividades, o Grupo Wagner opera por debaixo dos panos em um emaranhado turvo de entidades ligadas aos militares do estado russo, com uma conexão implícita, não reconhecida pelo Kremlin, mas de certa forma perceptível (PAQUETTE, 2022).
As ações da PMC Wagner foram descritas pela primeira vez em 2014 no conflito ao leste da Ucrânia, e hoje em dia o grupo apresenta operações suspeitas e comprovadas em até 30 países em 4 continentes, com seus integrantes sendo chamados frequentemente de mercenários (CARBONE; LAY; NSAIBIA; SERWAT, 2022). De acordo com Milton Sands, contra almirante da Marinha e chefe do Comando de Operações Especiais da África, – “Wagner chega, desestabiliza ainda mais o país, devasta os recursos minerais e ganha o máximo de dinheiro que pode antes de decidir partir, o país fica mais pobre, mais fraco e menos seguro todas as vezes.” (PAQUETTE, 2022).
PERPETUAÇÃO DO CICLO DE VIOLÊNCIA E AGRAVAMENTO DOS ABUSOS AOS DIREITOS HUMANOS
Durante as várias décadas de conflito, o Mali explorou diversas tentativas para a construção de uma paz durável na região (peace building), algumas até promissoras, no entanto, por múltiplos fatores, como o uso de violência direta (um estado de paz negativa), o governo não consegue quebrar o ciclo de violência que paira sobre o estado e a população civil. A perpetuação desse ciclo é vista hoje com a presença do Grupo Wagner no território.
A junta militar maliana nega a contratação dos mercenários, reconhecendo somente a presença de treinadores militares russos, a despeito de evidências sugestivas como, manifestações pró-Rússia com cartazes escritos “EU AMO WAGNER” e “OBRIGADO WAGNER”, e o reconhecimento do próprio ministro das Relações Exteriores da Rússia – Sergei Lavrov – sobre a presença de Wagner no país (PAQUETTE, 2022).
Relacionado a isso, uma das poucas declarações do governo de Bamako ressaltou que o país está progredindo na securitização pelo fato de ter “diversificado as parcerias”, atribuindo o avanço aos novos equipamentos militares e aos “instrutores” russos (CRISIS GROUP, Mali, 2022). De acordo com oficiais militares dos EUA e da França focados na África, o contingente de soldados do Grupo Wagner no Mali está entre 800 e 1000 homens, e até o momento a forma que eles estão sendo pagos permanece obscura (PAQUETTE, 2022).
O Grupo Wagner está envolvido em vários ataques de alta letalidade contra a população civil no Mali, mesmo que a implantação e permanência dos mercenários no território seja de certa forma recente, vários órgãos da ONU já apresentam preocupações com os abusos e violações aos direitos humanos cometidos pelos soldados russos. A vista disso, nesse novo cenário um movimento das Forças Armadas do Mali intensificou as operações contra os insurgentes islâmicos, em conjunto com Wagner, aumentando assim as operações de retaliação, o que resultou em vários ataques mortais contra civis (CARBONE; LAY; NSAIBIA; SERWAT, 2022).
De acordo com pesquisadores da Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED, 2022) e seu relatório geral sobre essa fase do conflito, foram registradas quase 500 mortes de civis em ataques promovidos pelo Grupo Wagner, operando principalmente ao lado das forças estatais, nas áreas centrais do Jama’at Nusrat al-Islam wal-Muslimin (JNIM), afiliadas à Al Qaeda. Nas regiões de Mopti, Segou, Tombouctou e Koulikoro, presentes nessa área, os mercenários Wagner promovem altos níveis de alvejamento de civis, sendo essa violência contra civis contabilizada como 71% das atuações do grupo na violência política no Mali (CARBONE; LAY; NSAIBIA; SERWAT, 2022).
Em meio aos inúmeros ataques, o massacre na cidade de Moura, localizada na região de Mopti, ao centro do Mali, foi o mais brutal dos confrontos, caracterizado pela organização Human Rights Watch (2022) como a pior atrocidade registrada na última década do conflito armado no Mali. A intensa onda de assassinatos tomou a cidade em março deste ano, em que as forças armadas do Mali e um grupo de soldados estrangeiros executaram sumariamente cerca de 300 pessoas, algumas delas suspeitas de serem combatentes islâmicos, porém a grande maioria eram civis sob custódia. Ademais, é importante ressaltar que tais acontecimentos violam o direito humanitário internacional, sendo uma obrigação de todas as partes do conflito armado no Mali, incluindo combatentes estrangeiros, obrigadas a cumprir as leis da guerra. A lei aplicável inclui o Artigo 3º Comum das Convenções de Genebra de 1949, que proíbe abusos
contra “pessoas que não participam ativamente das hostilidades”, e o direito internacional consuetudinário. De acordo com isso, a morte deliberada ou outro abuso de uma pessoa sob custódia é um crime de guerra (HUMAN RIGHTS WATCH, 2022).
Por fim, a diretora do Sahel da Human Rights Watch, Corinne Dufka, ressalta em um pronunciamento referente aos ataques que
Os abusos cometidos por grupos islâmicos armados não justificam de forma alguma o massacre deliberado de pessoas sob custódia dos militares, o governo do Mali é inteiramente responsável por esta atrocidade como essa, sejam elas perpetrada por forças do Mali ou por soldados estrangeiros associados (MALI…, 2022).
CONCLUSÃO
O cenário atual é complexo e pouco promissor, uma vez que agora o conflito no Mali se distancia cada vez mais de um processo de resolução. O isolamento de parceiros tradicionais coloca o governo de Bamako em uma posição delicada no sistema internacional, uma vez que o Estado se coloca em uma posição de extrema vulnerabilidade em relação aos novos parceiros russos. Embora os combates contra os terroristas tenham se mostrado eficazes nessa fase do conflito, está longe de ser certo que o exército será capaz de manter sua nova posição no centro. Além disso, é importante destacar que as motivações do Grupo Wagner são incertas, podendo ir muito além de só uma empresa de segurança paga para combater o terrorismo, e a ameaça a população civil é evidente devido as inúmeras violações e abusos aos diretos humanos perpetrados pelos mercenários russos desde que chegaram ao país. Dessa forma percebe-se que, mesmo que esse conflito termine por meio de uma vitória militar contra os grupos terroristas, ainda haverá grandes chances de, no futuro, o conflito aflorar novamente, visto que as causas
que os geraram não foram resolvidas.
REFERÊNCIAS
CARBONE, Vincenzo; LAY, Timothy; NSAIBIA, Héni; SERWAT, Ladd. Wagner Group Operations in Africa. The Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED), 30 ago 2022. Disponível em: https://acleddata.com/2022/08/30/wagner-group-operations-in-africacivilian-targeting-trendsin-the-central-african-republic-and-mali/. Acesso em: 04 dez. 2022.
INTERNATIONAL CRISIS GROUP. Mali: Staying Engaged Despite Souring Relations, 25 maio 2022. Disponível em: https://www.crisisgroup.org/africa/sahel/mali/mali-stayingengaged-despite-souring-relations. Acesso em: 04 dez. 2022.
PAQUETTE, Danielle. Russian mercenaries have landed in West Africa, pushing Putin’s goals as Kremlin is increasingly isolated. Washington Post, 09 mar. 2022. World Africa. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/world/2022/03/09/mali-russia-wagner/. Acesso em: 04 dez. 2022.
MALI: HRW condemns ‘deliberate slaughter’ of 300 men by military. Al Jazeera, 05 abr. 2022. News. Human Rights. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2022/4/5/mali-military-foreign-fighters-summarilyexecute-300-people-hrw>. Acesso em: 04 dez. 2022.
HUMAN RIGHTS WATCH. Mali: Massacre by Army, Foreign Soldiers. Nairobi, 05 abr. 2022. Disponível em: https://www.hrw.org/news/2022/04/05/mali-massacre-army-foreignsoldiers. Acesso em: 04 dez. 2022.
DUARTE, Geraldine Rosas. Crise no Mali: as origens do conflito e os entraves para a resolução. Conjuntura Internacional, Belo Horizonte, v. 10, n. 1, p. 7-14, 2013. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/conjuntura/article/view/5256/5220. Acesso em: 04 dez. 2022.
DUARTE, Geraldine Marcelle Moreira Braga Rosas; ANDRADE, Letícia Carvalho de Souza; SOUZA, Matheus de Abreu Costa; BALESTRINI, Amanda. “It may look like war, but it’s peace-keeping”: a MINUSMA e o Processo de Paz no Mali. Conjuntura Internacional, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 28-40, abr. 2019. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/conjuntura/article/view/20477/15110. Acesso em: 04 dez. 2022.