A política externa africanista de Emmanuel Macron: “Qual a situação da Françafrique?”
Pedro Aluízio Resende Leão
Com a pergunta “A Françafrique continua?” Adebayo Vunge (2017) começou seu capítulo sobre o continente africano na agenda de política externa do governo francês, buscando entender se a gestão de François Hollande ainda seguia a orientação tradicional da política externa africanista francesa. Neste mês, quando se completa um ano da eleição de Emmanuel Macron à presidência, a pergunta ainda é pertinente: as primeiras atuações de Macron em solo africano refletem estratégias políticas coloniais francesas ou quebram com o paradigma de política externa para a África?
Para iniciar um debate sobre esta pergunta, este trabalho analisará os discursos de Macron durante a sua primeira viagem à África Ocidental e se eles refletem a lógica de política externa que foi dominante na relação entre a França e o continente africano durante muito tempo. Para tal, deve-se analisar os discursos proferidos durante a visita de Estado de Macron a Burquina Faso, Costa do Marfim e o Gana, em novembro de 2017.
A Identidade da política externa tradicional francesa para a África: Françafrique
O termo Françafrique foi cunhado por Houpouet-Boigny, ex-presidente da Costa do Marfim, e sintetiza muito de como foi a atuação externa da França para os países africanos, a partir das independências no continente. A partir da década de 1960, a França foi a potência colonial que mais continuou a exercer influência sob suas antigas colônias africanas. As principais marcas da política externa africanista francesa do período da guerra fria foram as ligações diretas com as elites governamentais, a sustentação ao sistema monetário dos países, largos laços econômicos e intervenções militares diretas para a sustentação no poder de setores aliados aos governos franceses. Todo este esforço visava garantir a proeminência da influência francesa nos países africanos, principalmente na África Ocidental (THOMSOM, 2010).
A relação franco-africana se construiu de tal forma forte que, durante a segunda guerra mundial e toda a Guerra Fria, a relação entre França e a África francófona se dava de maneira quase “paternal”. Nesta concepção, as ex-colônias africanas viam a relação com a França como um projeto político intercultural que se formava ao entorno dos laços linguísticos e políticos, quase familiares. Em comparação, a França teve seus laços diplomáticos, financeiros e culturais sob terreno africano muito mais afirmados que, por exemplo, Estados Unidos, Grã-Bretanha ou União Soviética, outras potências centrais na arena política no período (THOMSOM, 2010).
Nestes termos, já se nota os principais pilares que sustentam a política africanista tradicional francesa. Vunge (2017, p. 90) resume em “três eixos principais: Eliseu, Total e Exército”. Estes braços da política externa refletem os três focos principais de ação: Eliseu (nome do palácio da presidência francesa), sobre a ação política e diplomática, Total (antiga Elf, petroleira francesa de relevante protagonismo local) e o Exército, peça importante para presença da força de terra francesa, que executou – e executa – missões em solo africano. Clipham (1996, p. 88), todavia, varia um pouco e aponta mais genericamente: os laços que unem os países francófonos devem ser “analisados em três elementos inter-relacionados: pessoas, dinheiro e força”.
Sobre as pessoas, a relação diplomática entre os atores políticos franceses, políticos de alto escalão, formuladores de política e decisores franceses sempre foi muito próxima dos agentes políticos africanos, dos líderes governamentais e das elites políticas que tradicionalmente estão no poder na África francófona. Este engajamento diplomático direto próximo e pessoal lembra a construção da ideia de comunidade de indivíduos transcontinental (CLIPHAM, 1996)
O outro instrumento político francês apontado por Clipham (1996), o “dinheiro”, é um dos elementos mais visíveis da tríade de política externa. Sobre esta esfera, realçamos duas ações que fazem das iniciativas francesas na África Ocidental uma questão marcante: as doações de ajuda financeira internacional e cooperação para o desenvolvimento e a ingerência do Banco Central francês sobre a estabilidade e a política monetária do franco CFA[i]. Durante muito tempo, perseveraram críticas que a posição francesa com relação à moeda da Comunidade Afro-ocidental seria instrumento de dominação neocolonial, ao desfavorecer as exportações africanas para a França com relação às importações de produtos franceses para os africanos[ii].
Pelo lado das operações militares, a França interviu mais em território africano do que qualquer outra potência estrangeira. Destacam-se as intervenções na Costa do Marfim (2002), Chade (2006 e 2008) e na República Centro Africana (2006). Em 2013, a França iniciou a participação na Missão Multinacional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização do Mali (MINUSMA), onde foram destacados, inicialmente, 8000 homens para a resolução do conflito no norte do Mali. Além disto, a Operação Barkhane foi lançada pela França em 2014 e firmou o destacamento de tropas francesas no Mali, Burkina Faso, Níger e Chade[iii] (CLIPHAM, 1996; MINISTÈRE DES ARMÉES, 2017).
Análise discursiva de Macron: a presença cultura, dos militares e dos investimentos
Depois de entendidos os pilares do Françafrique, analisamos os três discursos de Macron e observamos de que forma ainda estão (ou não) presentes nos mais recentes discursos do presidente francês em solo africano. Foram observados os critérios de (i) proximidade e familiarização entre França e África (ii) defesa da participação francesa na economia regional e (iii) defesa do papel das ações militares francesas nos países africanos. Nesta oportunidade, pegamos os discursos em Ouagadougou, em Burkina Faso (dia 28 de novembro de 2017), Abidjan (29 de novembro), na Costa do Marfim e Accra (30 de novembro), no Gana.
A partir da análise, evocam-se narrativas tradicionais e propostas modernizadoras que, se forem confrontadas diretamente, geram certo grau de estranheza pela contradição existente entre os argumentos que são mobilizados. A principal questão que se faz latente e que deve ser observada a respeito dos discursos de Macron, principalmente em Ouagadougou e em Abdajn é a incongruência recorrente na tentativa de viabilizar uma modernização no discurso francês, mas que ao mesmo tempo evoca as mesmas narrativas e teses que são tradicionais na política exterior africanista da França.
A principal ideia apoiada pelo chefe de Estado francês junto aos seus interlocutores gira entorno de uma “nova proposta”, de remodelação das relações sociais africanas, que devem ser repensadas em diversos níveis. Desde o nível do indivíduo ao nível do internacional, o discurso é pela maior liberdade e autonomia dos cidadãos e pela maior autonomia e protagonismo dos próprios Estados africanos na ingerência da política internacional regional.
No âmbito internacional, Macron (2017) parece propor uma nova agenda de política internacional para a África, fundamentada na estratégia de integração, via União Africana, de cooperação entre os Estados e, principalmente, de protagonismo e autonomia na política externa de cada Estado africano. Ao todo, a mensagem que parece ser passada é que a África deve buscar ser personagem de sua própria história de forma independente. Macron busca deixar claro que não há mais uma política francesa para a África. Como, no discurso em Ouagadougou, que o presidente francês afirma que não viajou à África “para dizer qual a política africana francesa, como alguns queriam. Porque não há mais política africana da França!” (MACRON, 2017, online). Com isto, defende-se a volta aos esforços de coordenação regional e de cooperação pan-africana, principalmente entre os Estados da zona de cooperação monetária da África Ocidental e cooperação em blocos com a União Europeia.
Contudo, as duas vertentes argumentativas disputam lugar dentro do discurso de Macron: o protagonismo da África enquanto sujeito de seu destino e a presença recorrente da figura da França na região. Apesar da nova narrativa trazida pelo presidente francês, a análise discursiva ainda mostra as marcas fundantes da política do Françafrique: o desejo de proximidade no nível cultural e interpessoal, a importância estratégica da cooperação Norte/Sul e o papel das ações militares francesas para a garantia da estabilidade sistêmica no tocante à segurança regional.
É notável a evocação da relação de familiaridade existente entre a França e os países francófonos. A principal linha argumentativa utilizada para justificar essa proximidade seria o compartilhamento de uma história comum, de valores, interesses, laços de fraternidade e proximidade identitária que deve ser conservada. Ressalta-se, em vários momentos, passagens que buscam aproximar a identidade dos franceses e africanos: “estou convencido […] que nós não podemos simplesmente nos olhar como estando a milhares e milhares de quilômetros, mas como estando com o sangue, a história e os destinos entrelaçados” (MACRON, 2017, online). Mesmo no Gana, país anglófono e que tem pouca relação histórica com a França, Macron exalta algum tipo de proximidade histórica e o futuro da relação diplomática entre os países.
Um assunto recorrente nas manifestações do presidente foi a situação dos jovens ganeses, burquinenses e marfinenses. Para Macron, a mudança dos países está aliada com a capacitação de jovens ao trabalho. Macron ressalta a tese de compartilhamento de identidades propõe a cooperação acadêmica entre a França e a África Ocidental para que os estudantes africanos tenham as oportunidades de estudo que têm os estudantes franceses e que compartilhem ainda o mesmo conteúdo, quer seja em “Lyon, Bordeaux ou Ouagadougou” (MACRON, 2017, online).
É importante notar que, como esperado, percebe-se uma proximidade muito maior entre a política francesa e os países francófonos do que com Gana. O caráter linguístico é extremamente relevante nos discursos de Macron, pois é a partir da língua francesa que se percebe o argumento mais forte para a aproximação entre Estados e para o desenvolvimento de ações de cooperação. Macron exalta enormemente, na Costa do Marfim e principalmente em Burquina Faso, o “orgulho francófono” e a necessidade da África adotar a língua francesa como própria e não entendê-la como uma instrumento de imposição neocolonial. Em uma passagem, Em Ouagadougou, ele defende a posição: “Portem com orgulho a francofonia, defendam-na, coloquem nela suas palavras, suas expressões, transformem-na, mudem-na à sua vontade” (MACRON, 2017, online). É importante observar que esta proposta vem em um momento que a África busca abandonar os costumes coloniais e se volta cada vez mais para a valorização da história pré-colonial.
As outras marcas que remetem ao Françafrique também foram notadas principalmente em Burquina Faso e em Costa do Marfim. A administração Macron deseja claramente participar de projetos de cooperação para o desenvolvimento que contemplem a região. No Burquina, o presidente francês não precisou em quais projetos a França se engajará, mas afirmou que 0,55% do Produto Interno Bruto francês será destinado aos projetos na região. Investimentos também serão efetuados no setor privado africano, onde os departamentos de desenvolvimento franceses, fundos europeus e parceiros privados europeus irão financiar projetos nas áreas de agricultura, transporte, infraestrutura produtiva e energia. Em Abdajn devem ser incentivados projetos na área de mobilidade urbana pra renovação das linhas ferroviárias, as quais a França já é parceira. Além disso, Macron defende a possibilidade do fortalecimento do Investimento Direto Externo de empresas francesas na África Ocidental (MACRON, 2017).
O último ponto, a presença militar francesa na África Ocidental, é menos citado por Macron, mas ainda assim se faz presente nos três discursos, principalmente naqueles direcionados às comunidades francófonas. Macron propõe continuidade da presença militar francesa, que é justificada pelas ações de combate ao terrorismo a ao tráfico de pessoas. No discurso também sustenta que a história em comum da França com as sociedades africanas encoraja o país a estabelecer operações em países da África Ocidental, como na intervenção na guerra civil no Mali e na Missão das Nações Unidas para o país, a MINUSMA (MACRON, 2017)..
Além disso, Macron reforça o papel da Operação Barkhane para a estabilidade na região e aponta que os franceses devem acelerar o trabalho que acontece conjuntamente ao G5 Sahel. O presidente ressalta ainda o papel francês de organização, apoio financeiro e militar que fez da cooperação franco-africana um “exemplo”. Ao que indica, a cooperação militar entre a organização do G5 Sahel e governo francês ainda deve continuar por mais algum tempo, visto a aprovação pelo presidente francês da cooperação multilateral, que, para ele, visa assegurar a “segurança coletiva”. (MACRON, 2017).
Considerações finais
Depois de observados os discursos de Emmanuel Macron nos três países da África Ocidental a partir dos princípios da Françafrique, percebe-se o começo de alguns delineamentos da política francesa para a região pelos próximos anos. Em primeiro lugar, nota-se a mobilização do discurso modernização e autonomia da África e direito dos países do continente de protagonismo de sua própria história. Isto se dá pela defesa a uma União Africana e CEDAO fortes, independência da política externa dos países africanos e defesa ao desenvolvimento sociopolítico sustentado da região.
Contraditoriamente, percebe-se que ainda estão presentes vários fatores relacionados à prática do Françafrique e à política externa francesa tradicional, apontada como neocolonial. A principal sustentação argumentativa de Emmanuel Macron para a importância da manutenção da relação entre os dois lados do Mediterrâneo ainda continua a ser o compartilhamento de uma identidade e história comum, formando a família francófona. Nesta perspectiva, entende-se também a aproximação ainda maior com Burquina Faso e Costa do Marfim do que com o Gana, apesar de haverem também projetos sendo desenvolvidos entre Gana e França.
Assim, a análise de discurso mostra que relação intercultural, econômica e militar ainda continua sendo o principal vínculo que o governo francês mobiliza para se manter próximo das dinâmicas políticas e sociais da África ocidental francófona. Destes três, a narrativa de compartilhamento de valores é o que tem a maior centralidade no discurso francês, como encerra Macron (2017, online) o discurso em território burquinês: “agora marchemos juntos por este caminho […] e aprendamos a amar fortemente nossa história compartilhada e nosso futuro em comum”.
Referências Bibliográficas
CLAPHAM, Christopher. Africa and the international system. Cambridge: CAMBRIDGE UNIVERSITY PRESS, 1996. 340 p.
FRANCE DIPLOMATIE. Le g5 sahel et l’alliance sahel. Disponível em: <https://www.diplomatie.gouv.fr/fr/dossiers-pays/afrique/le-g5-sahel-et-l-alliance-sahel/>. Acesso em: 07 mai. 2018.
GRUPO ATLÂNTICO SUL. Violência em burkina faso: a amostra da intrincada questão de segurança no sahe. Disponível em: <https://grupoatlanticosul.com/2018/03/07/violencia-em-burkina-faso-a-amostra-da-intrincada-questao-de-seguranca-no-sahel/>. Acesso em: 07 mai. 2018.
LE FIGARO. Macron veut une europe plus engagée en afrique. Disponível em: <http://www.lefigaro.fr/international/2017/11/28/01003-20171128artfig00335-macron-veut-une-europe-plus-engagee-en-afrique.php>. Acesso em: 07 mai. 2018.
LE FIGARO. Macron à la conquête des africains. Disponível em: <http://www.lefigaro.fr/international/2017/11/27/01003-20171127artfig00211-macron-a-la-conquete-des-africains.php>. Acesso em: 07 mai. 2018.
LIBÉRATION. Macron en afrique : le discours et la méthode. Disponível em: <http://www.liberation.fr/planete/2017/11/27/macron-en-afrique-le-discours-et-la-methode_1612933>. Acesso em: 07 mai. 2018.
LIBÉRATION. Macron, toujours la même chanson. Disponível em: <http://www.liberation.fr/france/2018/04/12/macron-toujours-la-meme-chanson_1643024>. Acesso em: 07 mai. 2018.
MACRON, Emmanuel. Déclaration du président de la république, emmanuel macron, à l’independance square d’accra au ghana. Disponível em: <http://www.elysee.fr/videos/new-video-143/>. Acesso em: 07 mai. 2018.
MACRON, Emmanuel. Discours du président de la république, emmanuel macron, lors du lancement des travaux de construction de la ligne 1 du métro d’abidjan. Disponível em: <http://www.elysee.fr/declarations/article/discours-du-president-de-la-republique-emmanuel-macron-lors-du-lancement-des-travaux-de-construction-de-la-ligne-1-du-metro-d-abidjan/>. Acesso em: 07 mai. 2018.
MACRON, Emmanuel. [document] le discours d’emmanuel macron à ougadougou. Disponível em: <http://www.jeuneafrique.com/497596/politique/document-le-discours-demmanuel-macron-a-ougadougou/>. Acesso em: 07 mai. 2018.
MINISTÈRE DES ARMÉES. Dossier de presse: Opération Barkhane. Disponível em: <file:///C:/Users/pedro/Downloads/DP-BARKHANE-0118.pdf>. Acesso em: 07 mai de 2018
THOMSOM, Alex. An introduction to african politics. 3. ed. Nova Iorque: Routledge, 2010.
VUNGE, Adebayo. Pensar África. Lisboa: Rosa de Porcelana, 2017.
[i] O franco CFA é a moeda corrente presente na região monetária unificada da África Ocidental, chamada de Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (ECOWAS/ CEDAO). Nela participam: Benim, Burkina Faso, Cabo Verde, Costa do Marfim, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Libéria, Mali, Níger, Nigéria, Senegal, Serra Leoa, Togo.
[ii] Para acompanhar toda a discussão ao entorno do franco CFA e a réplica à crítica da posição neocolonizadora francesa, conferir Clipham (1996, p.93-95).
[iii] Para mais informações sobre a recente operação conduzida pela França e os seus reflexos no complexo de segurança na África Ocidental, consultar: https://grupoatlanticosul.com/2018/03/07/violencia-em-burkina-faso-a-amostra-da-intrincada-questao-de-seguranca-no-sahel/