ANARQUIA PARA QUEM?
Maria Clara de Oliveira Drawin
Um dos conceitos basilares para as Teorias de Relações Internacionais é a anarquia do Sistema Internacional. Essa anarquia se dá a partir da configuração do Sistema, que tem a soberania do Estado como princípio inviolável. Pode-se pensar, porém, que essas teorias foram escritas no que chamamos de “primeiro mundo”, e, por muito tempo, as Teorias de Relações Internacionais não pensavam na periferia. Talvez seja possível, a partir de um olhar decolonial, questionar essa Anarquia com “A” maiúsculo, e repensá-la a partir das relações de dominação pós-coloniais que perpetuam no Sul Global até hoje. Partindo desse pressuposto, iremos analisar uma série de eventos da política externa do Suriname para averiguarmos essa possibilidade.
Segundo sites de notícias como o “Journal of Petroleum Technology” e o “Newsgram” , foi descoberto no território marítimo do Suriname no final de Setembro de 2020 valiosos poços de petróleo até então desconhecidos. Supostamente, uma descoberta dessas significaria uma maior projeção internacional para o país, tanto mercadológica quanto política, e seria uma faísca de independência e desenvolvimento para uma nação que ainda é marcada pelas feridas de um mundo colonial e de um Sistema Internacional desigual.
Há alguns indícios, porém, que essa não será a realidade do Suriname. A começar pelo custo do investimento para a exploração desses poços de petróleo, o despreparo e a inexperiência que o país tem com o tema, além das variações econômicas como preço do barril e do mercado inflado, o Suriname enfrenta um outro empecilho: uma complexa história com a China.
Segundo o site de notícias “MercoPress” ,o atual secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, em uma aparição com o novo presidente do Suriname, alegou que a China estabelece uma relação predatória com esses países emergentes na América Latina, já que seus investimentos são feitos com inúmeros condicionantes, principalmente no contexto político. Segundo o site, a fala de Pompeo foi motivada pelas descobertas recentes de petróleo na costa do Suriname.
As embaixadas da China no Suriname e na Guiana acusaram o secretário de Estado dos EUA Mike Pompeo de “espalhar boatos” e “difamar” Pequim, depois que o principal diplomata de Washington criticou empresas chinesas durante uma viagem de quatro paradas à América do Sul. Em uma aparição conjunta com o recém-eleito presidente do Suriname, Chan Santokhi, Pompeo disse que as empresas chinesas muitas vezes não competem em uma “base justa e equilibrada”. “Nós vimos o Partido Comunista Chinês investir em países, e tudo parece ótimo no front end e então tudo desmorona quando os custos políticos relacionados a isso se tornam claros”, disse Pompeo. Seus comentários foram feitos após uma série de descobertas de petróleo na costa do Suriname, cujos laços comerciais com a China cresceram sob o ex-presidente do pequeno país sul-americano Desi Bouterse, um forte militar que supervisionou um colapso econômico e perdeu uma candidatura à reeleição para Santokhi no início deste ano. (MERCOPRESS, 2020)
Para entendermos com maior clareza o contexto por trás dessa fala, é necessário conhecer o histórico da relação entre o país sul americano e a potência asiática, bem como o viés estadunidense sobre esse fenômeno.
A relação do Suriname com a China atravessa uma longa e turbulenta história. É importante notar que a China usa sua relação comercial com países do Sul Global como ferramenta de barganha e instrumento de projeção de poder, a fim de se estabelecer como uma potência influente e capaz de disputar com o hegêmona estadunidense (Drawin, 2018).
Uma das estratégias utilizadas pela China, segundo o autor Richard L. Harris (2015), seria a de estabelecer uma relação amigável com países da América Latina e propor investimentos a essas economias emergentes, para, enfim, estabelecer uma relação de troca e um precedente de cobrança. E, como foi apresentado no Texto Conjuntural, com o Suriname não foi diferente.
Devido aos investimentos chineses, o Suriname entrou em tamanha dívida com a potência asiática que uma solução temporária foi vender seus principais ativos para a China a fim de quitar a dívida, com o efeito colateral de se tornar ainda mais dependente do país, entrando em um ciclo dificilmente quebrável.
Isso tudo, porém, como pode-se concluir da citação anterior, ocorreu durante o governo de Desi Bouterse, o ex-presidente do Suriname que participou do golpe militar na década de 80, foi chefe de Estado por dois anos durante esses anos e, posteriormente, foi alçado democraticamente ao poder entre 2010 e 2020. A perda da reeleição em 2020 parece ser um consequência direta de uma sentença proferida por uma corte militar do país, em 2019, que o considerou culpado pelos “Assassinatos de Dezembro” na década de 80, os quais deram início a esse golpe de Estado.
Apesar desse histórico de relações comerciais com a China na última década, é possível presumir que uma mudança tão drástica na política doméstica do Suriname iria afetar a política externa do país, inclusive, com com relação ao “dragão asiático”.
Uma vez esclarecido o contexto da relação entre Suriname e China e seu histórico de disputa por recursos locais, podemos enfim compreender o que existe por trás da fala de Pompeo. Faz-se necessário, no entanto, conhecer também o cenário em que ocorre a complexa relação entre Estados Unidos e Suriname, atravessada pela disputa de poder com a China.
Uma análise do site de notícias “Global Americans” sobre as eleições de 2020 no Suriname oferecem um insight sobre os interesses estadunidenses, que não são tão neutros ou puros em comparação com os da China como Pompeo faz parecer.
Em muitos aspectos, as eleições de 2020 são um referendo sobre Bouterse, de 74 anos, que desempenhou um papel importante no desenvolvimento político do Suriname desde o golpe militar de 1980. Seja qual for o resultado, o próximo governo enfrenta desafios substanciais para lidar com a corrupção, o potencial para uma economia ainda mais deteriorada e ser pego no fogo cruzado de uma situação semelhante à Guerra Fria que se aprofunda entre a China e os Estados Unidos. (…) Os holandeses ainda têm um mandado de prisão pendente para Bouterse por sua condenação por tráfico de drogas em 1999 na Holanda. Os EUA gozam oficialmente de “uma parceria construtiva” com o Suriname, mas Washington foi um dos países que assinou uma carta de apoio ao tribunal surinamês que prosseguiu com a sentença de Bouterse a 20 anos de prisão. Além disso, os EUA mantêm em seu sistema prisional o filho de Bouterse, Dino, que foi condenado por conspirar para traficar cocaína para os Estados Unidos, além de tentar oferecer o Suriname como base para o Hezbollah. Outro ponto de atrito é a disposição de Bouterse em aprofundar os laços de seu país com a China, colocando pressão adicional na relação Washington-Paramaribo. Na verdade, Bouterse estava em uma visita oficial à China em busca de maior ajuda quando foi condenado e sentenciado pelos assassinatos de 1982. Completando o quadro, o Suriname tem sido relativamente próximo do regime de Nicolás Maduro na Venezuela e tem relações cordiais com Cuba. No caso do primeiro, Bouterse foi acusado de ajudar o regime de Maduro a vencer as sanções econômicas impostas pelos EUA ao ajudar na venda internacional de ouro extraído ilegalmente. Com uma abordagem cada vez maior da Guerra Fria aos assuntos caribenhos por parte do governo Trump, o Suriname entrou discretamente no radar de Washington. (GLOBAL AMERICANS, 2020)
A partir dessa curta análise, é possível concluir que o destino do Suriname parece permanecer nas mãos de grandes potências. Somente 45 anos após sua independência da Holanda, o país já se vê refém de uma guerra silenciosa entre Estados Unidos e China, que parece ditar sua política doméstica e sua relação com os seus próprios recursos naturais.
A fala de Pompeo que faz alusão a uma futura disputa comercial com a China pelos recém descobertos poços de petróleo no Suriname vai além de uma competição econômica circunstancial. Essa fala escreve no futuro ainda inexistente do Suriname mais alguns anos de dominação e disputa, sem que o país tenha uma escolha sobre isso. Mais do que uma dominação material sob o país sul-americano, essas potências parecem dominar a narrativa de sua história, escrevendo-a de acordo com seus interesses estratégicos. Além disso, esse conflito hegemônico parece moldar a percepção que o povo surinamês tem de si próprio, na medida em que são apenas uma “nota de rodapé” da história do hegêmona, seja lá quem ele for.
O Suriname, assim como outros países do Sul Global, pode dispor de uma soberania legal e teórica, mas não concreta.
REFERÊNCIAS
APACHE AND TOTAL FIND HYDROCARBONS OFF SURINAME. Journal of Petroleum Technology, 2020. Disponível em: https://pubs.spe.org/en/jpt/jpt-article-detail/?art=7635 . Acesso em: 16 de Outubro de 2020
CHINESE EMBASSIES IN SURINAME AND GUYANA ACCUSE POMPEO OF SMEARING BEIJING. Merco Press, Montevideo, 22 de Setembro de 2020. Disponível em: https://en.mercopress.com/2020/09/22/chinese-embassies-in-suriname-and-guyana-accuse-pompeo-of-smearing-beijing . Acesso em: 16 de Outubro de 2020
DRAWIN, M. C. DE O. AS DUAS FACES CHINESAS E A RELAÇÃO COM O SURINAME. Grupo Atlântico Sul, Belo Horizonte, 1 de Dezembro de 2018. Texto Conjuntural. Disponível em: https://grupoatlanticosul.com/2018/12/01/texto-conjuntural-norte-da-america-do-sul-15-as-duas-faces-chinesas-e-a-relacao-com-o-suriname/ . Acesso em: 16 de Outubro de 2020
MACDONALD, Scott B. SURINAME’S MAY 2020 ELECTIONS: CROSSROADS TIME? Global Americans, 2020. Disponível em: https://theglobalamericans.org/2020/05/surinames-may-2020-elections-crossroads-time/ . Acesso em: 16 de Outubro de 2020
THE UNPRECEDENTED OIL WEALTH IN GUYANA AND SURINAME, AND OPPORTUNITIES FOR TRINDAD. Newsgram, Chicago, 7 de Outubro de 2020. Disponível em: https://www.newsgram.com/unprecedented-oil-wealth-guyana-suriname-and-opportunities-trinidad/ . Acesso em: 16 de Outubro de 2020