Por Isabella da Rocha Santos
O impacto da dissolução do Tribunal da SADC na preservação dos Direitos Humanos na África Austral
Na presente análise, será abordado sobre o impacto da dissolução do Tribunal da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC, na sigla inglês), em 2010, para a garantia dos Direitos Humanos na região da África Austral. O fato ocorreu após conflitos políticos com o governo do Zimbábue, membro da organização, referente as interferências da instituição em assuntos domésticos do Estado. Será discutido como o Tribunal surgiu e como ocorreu a suspensão de seu mandato, a importância do Tribunal como instituição defensora dos diretos humanos para os países da região, assim como o que tem sido feito a respeito da retomada de suas atividades.
A SADC foi formada em 1992, a partir dos esforços de coordenação de políticas entre os Estados da região, com a organização dos Estados da Linha de Frente (FLS, na sigla em inglês), em apoio aos movimentos de libertação nacional e da diminuição da dependência econômica da África do Sul – no contexto do apartheid e resistência à descolonização. O objetivo inicial era tratar de assuntos econômicos, políticos e securitários. Os primeiros membros da organização foram Angola, Botsuana, Lesoto, Malavi, Moçambique, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue, com sua carta tendo sido assinada em 1992, e o último membro da região, Madagascar, passando a fazer parte no ano de 2005 (SCHUTZ, 2016).
Um dos princípios de cooperação da SADC invoca políticas e práticas que dizem respeito à garantia dos direitos humanos. No entanto, embora a organização centralize o desenvolvimento desses direitos fundamentais em seu Tratado, eles não são uma prioridade, assumindo, assim, um papel secundário nas formulações de políticas. Já o Tribunal da SADC não expressa uma atuação especifica no âmbito dos Direitos Humanos, porém, desde a sua formulação, tem conhecido e decido questões dentro da temática. Nesse sentido, o Tribunal surgiu como uma das instituições da organização, o qual cumpriria as seguintes funções:
O Tribunal tem jurisdição sobre a interpretação e a aplicação do Tratado, dos protocolos e instrumentos subsidiários da SADC e todos os assuntos relacionados a acordos específicos entre os Estados membros, tanto no âmbito da comunidade quanto entre eles mesmos (SOUTHERN AFRICAN DEVELOPMENT COMMUNITY, 2000, art. 14 apud MURUNGI; GALLINETTI, 2004 p.125).
O protocolo de criação do Tribunal foi submetido na SADC no ano de 2000 e aprovado em 2005, inaugurando, assim, a sua Corte com participação de todos os membros da organização. Com base no mencionado acima, seu papel era o de atuar nas controvérsias entre os Estados e em disputas entre pessoas físicas ou jurídicas em relação aos Estados. Para uma pessoa mover uma ação contra o Estado, ela teria de esgotar todos os recursos presentes na esfera doméstica de justiça do país em que a medida foi tomada. Após isso, bastaria que uma das partes apresentasse o pedido para à Corte, que, então, julgaria sua aceitabilidade ou não. As decisões do Tribunal eram finais e vinculativas para as partes, de forma que os Estados deveriam cumprir as sentenças, caso condenados, de acordo com as leis já estabelecidas (NATHAN, 2013).
O Tribunal era composto por uma Cúpula de juristas, nomeados pelos Estados membros, que apreciavam e aplicavam ações contra os países que deixassem de cumprir suas sentenças. Por não possuir capacidade de coerção, o esperado era a boa-fé dos Estados no cumprimento da lei para que a atuação da Corte tivesse eficácia. A problemática que resultou em sua suspensão foi o caso de uma ação de fazendeiros brancos, com destaque a Mike Campbell, que denunciou o Estado do Zimbábue ao Tribunal após suas terras terem sido apreendidas pelo governo.
Campbell alegou ter sofrido discriminação de raça, privação à propriedade e falta de um processo justo em relação a Suprema Corte de seu país. A medida tomada pelo governo estava de acordo com uma emenda constitucional de reassentamento de terras, uma vez que esse era um problema de caráter político, econômico e racial deixado pela colonização, razão pela qual uma minoria branca ainda mantinha um controle de terras reivindicadas por trabalhadores negros (ALTER, 2016).
Neste caso, também houve acusações de que o governo financiou milícias e apoiou as invasões às terras dos fazendeiros. Por ser um caso delicado e, de toda forma, controverso para ambos os lados, a decisão do Tribunal a favor de Campbell e outros fazendeiros, em 2008, gerou uma série de questionamentos sobre a atuação da instituição por parte do presidente do Zimbábue. Isso levou, em 2009, o presidente zimbabuano a submeter à Cúpula da SADC o seu descontentamento com a intervenção do Tribunal nos assuntos políticos domésticos de seu país, além de levantar uma questão sobre a não ratificação do Protocolo da Corte por 2/3 dos membros da SADC, o que implicaria na ilegalidade da sua atuação (NATHAN, 2013).
Outra questão importante foi a decisão da Cúpula de não renovar os contratos ou substituir os juízes da corte – o mandato vencia em 2010 – e a recomendação do não recebimento de novos casos, levando, mais tarde, o Tribunal à suspensão das suas atividades para revisão do Protocolo. Isto ocorreu, principalmente, pelo fato da Cúpula de Chefes de Estado da SADC ter preferido suspendê-lo ao invés de defendê-lo, enquanto o Zimbábue fazia ataques diplomáticos à Corte. Além do mais, alguns analistas acreditam que, por ter sido fundada com base no Tratado da SADC, a decisão de dissolver o Tribunal teria sido ilegal (PHOOKO, 2019).
O Tribunal foi suspenso após 5 anos de funcionamento com a expectativa de uma revisão e negociação do seu mandato para uma eventual reativação. Desde então, organizações e movimentos defensores de direitos humanos como o Human Rights Watch e a International Commission of Jurists (ICJ) vêm observando o andamento da questão. Nesse meio tempo, alguns julgamentos e decisões por parte de cortes domésticas discutiram e condenaram a saída de seus Estados do Tribunal.
Em 2016, o Tribunal de Pretória, na África do Sul, declarou como irracional, ilegal e inconstitucional a saída do país. Isso, pois, quando o ex-presidente da África do Sul, em 2014, assinou um protocolo para substituir o original do Tribunal – tentativa de reativação que não ocorreu – e decidiu retirar o Estado da instituição, o Executivo deveria ter submetido a questão para uma votação em seu parlamento, o que não ocorreu (ICJ, 2016).
Já em 2019, o Tribunal Superior da Tanzânia, que faz parte da SADC, mesmo não sendo considerado um país da África Austral, também condenou a atuação de seu governo e da ação ilegal da Cúpula da SADC na dissolução da Corte. A decisão foi baseada nas normas do direito internacional, dos princípios básicos da Declaração Universal dos Direitos humanos, das Diretrizes da ONU e da Carta Africana, argumentado, assim, que o Estado violou esses princípios na falta de sua observância, defesa e promoção (ICJ, 2019). Nas palavras de Arnold Tsunga, jurista integrante do ICJ: “A restauração do Tribunal da SADC ao seu carácter original irá facilitar o acesso individual a um mecanismo de accountability muito necessário, que aumentará grandemente a confiança regional nos direitos humanos e no Estado de Direito” (ICJ, [2016], n.p., tradução nossa[1]).
Nesse contexto, a dissolução do Tribunal impacta na garantia dos Direitos Humanos quando impede que ações individuais sejam passíveis de serem movidas, no âmbito regional, contra seus Estados. A falta de observância legitimada por parte de um tribunal regional que julgue violações desses direitos cometidas por Estados na África Austral se apresenta como uma lacuna que deixa de incentivar os países a promover os princípios difundidos universalmente, presentes na Carta da ONU, no Protocolo da SADC e em demais tratados e constituições no continente africano. Além disso, dado o histórico de colonização, disputas territoriais e raciais, junto com a independência tardia e adoção do modelo democrático de governança, uma corte regional é imprescindível para a garantia do Estado de Direito, sendo o acesso à justiça um dos direitos humanos fundamentais (SAHRC, 2019).
Na África do Sul, podemos perceber violações de direitos na negligência do Estado em prover segurança ou a investigar e julgar crimes. A tensão entre sul-africanos e residentes não sul-africanos tem aumentando na medida em que os nacionais culpam os estrangeiros pela piora no cenário econômico, pelo aumento do número de crimes e pela falha do governo nas prestações de serviços. Em 2019, grupos xenófobos atacaram, agrediram, saquearam e destruíram estabelecimentos de estrangeiros, muitas vezes, asiáticos e africanos de outros países. Embora haja relatos de mortes, apenas os estrangeiros têm sido apreendidos pelos crimes de violência, muitos dos presos e vítimas ainda estando privadas de acesso à justiça, documentação e serviços sociais. Embora o governo da África do Sul tenha entrado com um Plano de Ação Nacional de combate ao racismo, discriminação racial, à xenofobia e à intolerância, tal política ainda tem surtido pouco impacto na redução da violência. Ataques perpetrados por civis, policiais e membros do governo têm sido pouco investigados, além do próprio governo ter deixado de reconhecer a xenofobia como motivação da violência (Human Rights Watch, 2020).
Na Angola, a liberdade de expressão como direito democrático continua ameaçada. A Anistia Internacional, em um de seus relatórios, denunciou a presença de práticas de inibição de protestos pacíficos no país, com detenção, tortura e maus tratos sofridos por manifestantes por parte de autoridades. A ONG também relatou a ocorrência de crimes de assassinatos extrajudiciais nas minas de diamante por forças de segurança públicas e privadas, que, mesmo com investigação, ainda permanecem impunes (AMNESTY INTERNATIONAL, 2020). Já no Estado moçambicano, a problemática em Cabo Delgado também vem chamando atenção de autoridades internacionais pela escalada no conflito, com deslocamento massivo de pessoas dentro de Moçambique, e, principalmente, pelas violações dos direitos humanos por grupos armados e pelas forças do governo (DW, 2020).
A Human Rights Watch lançou um relatório, neste ano de 2020, no qual menciona eventos nos países da África para promoção dos direitos humanos, combatendo suas violações em casos como protestos políticos e violência de grupos armados, como também demandando revisões constitucionais progressistas em prol de tais direitos. Sobre esse relatório e a África Austral, o diretor do escritório da região, Dewa Mavhinga, chamou os líderes da SADC para se comprometerem com promoção do Direitos Humanos, apontando, também, para a possibilidade da África do Sul assumir a liderança na busca por esses direitos. Afirma-se que o Estado dispõe de instituições domésticas mais fortes e consolidadas que as dos demais, enfatizando que
com o tribunal da SADC privado do seu mandato de direitos humanos e os mecanismos internos muito fracos para proteger os direitos, os países da África Austral lutaram para melhorar a proteção dos direitos sociais, económicos e políticos durante o ano passado (AFRICA PORTAL, 2020, tradução nossa[2]).
Dessa forma, um Tribunal regional pode ser ator importante na promoção dos Direitos Humanos. Isso, pois, quando um Estado viola os direitos de seus cidadãos, ele pode interferir nas Cortes domésticas e impedir que julguem a favor dos indivíduos. Embora a atuação da corte regional ocorra somente após o esgotamento de recursos internos, a possibilidade de submeter ações contra Estados já é um grande passo na defesa de direitos fundamentais. O caso controverso julgado dos fazendeiros brancos no Zimbábue, embora seja delicado por envolver questões raciais, ilustra como a observância por parte de uma instituição regional legitimada e forte o bastante para aguentar as pressões dos Estados é importante e necessária.
Uma vez que um Tribunal regional julga uma ação de violação perpetrada por um país e o mesmo é condenado, a sentença pode servir de exemplo para coibir o desrespeito aos princípios dos Direitos humanos, bem como incentivar a sua promoção. É importante ressaltar que não são apenas Estados que podem ser julgados quando comentem crimes contra suas populações, pessoas físicas ou jurídicas também podem ser levadas a responder em uma Corte internacional.
Sendo assim, como foi apresentado, há questões preocupantes na região da África Austral, como de instabilidade política, econômica, segurança, falta de liberdade de expressão etc., como em Angola e Moçambique, e que, portanto, ao dissolver um importante organismo como o Tribunal da SADC, a confiança dos indivíduos na garantia dos Direitos Humanos tende a ser abalada, em função de que não têm para onde recorrer quando seus próprios Estados são os violadores.
REFERÊNCIAS
ICJ. Advocates for Justice and Human Rights.Tanzanian High Court condemns unlawful stripping of SADC Tribunal’s powers rendering the rule of law a “pipe dream”. 15 jun. 2019. Disponível em: https://www.icj.org/tanzanian-high-court-condemns-unlawful-stripping-of-sadc-tribunals-powers-rendering-the-rule-of-law-a-pipe-dream/. Acesso em: 21/10/2020
Africa Portal. Human rights under continued threat in Africa: report.23 de jan. 2020, Disponível em: https://www.africaportal.org/features/human-rights-under-continued-threat-africa-report/
ALTER, Karen J.; GATHII, James T.; HELFER, Laurence R. Backlash against international courts in west, east and southern Africa: causes and consequences. European Journal of International Law, v. 27, n. 2, p. 293-328, 2016.
Amnesty International. Human Rights in Africa Review of 2019. 2020. Disponível em: https://amnesty.is/assets/skyrsla-afrika.pdf
DW. Deutsche Welle. Amnistia Internacional denuncia “assassinatos extrajudiciais” em Angola.8 de mar. 2020. Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/amnistia-internacional-denuncia-assassinatos-extrajudiciais-em-angola/a-53060514
SAHRC. A ray of hope for access to justice in the SADC region. Disponível em: <https://www.sahrc.org.za/index.php/sahrc-media/opinion-pieces/item/2153-a-ray-of-hope-for-access-to-justice-in-the-sadc-region>. Acesso em: 2 nov. 2020.
Human Rights Watch. South Africa: Widespread Xenophobic Violence. 17 de set. 2020. Disponível em: https://www.hrw.org/news/2020/09/17/south-africa-widespread-xenophobic-violence
ICJ. Judgment on SADC Tribunal offers new hope for access to justice for human rights in Southern Africa. Advocates for Justice and Human Rights, 5 de mar. 2018. Disponível em: https://www.icj.org/judgment-on-sadc-tribunal-offers-new-hope-for-access-to-justice-for-human-rights-in-southern-africa/. Acesso em: 21/10/2020
MURUNGI, Lucyline Nkatha; GALLINETTI, Jacqui. O Papel Das Cortes Sub-Regionais No Sistema Africano de Direitos Humanos. SUR. Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 1, n. 1, p. 121-147, 2004.
NATHAN, Laurie. The disbanding of the SADC Tribunal: A cautionary tale. Hum. Rts. Q., v. 35, p. 870, 2013.
PHOOKO, Moses Retselisitsoe; NYATHI, Mkhululi. The revival of the SADC Tribunal by South African courts: A contextual analysis of the decision of the Constitutional Court of South Africa. De Jure Law Journal, v. 52, n. 1, p. 415-432, 2019.
SCHUTZ, Nathaly Xavier. A integração securitária na África Austral: a SADC e o OPDS. Revista Brasileira de Estudos Africanos, v. 1, n. 1, 2016.
[1] A restoration of the SADC Tribunal to its original character will facilitate individual access to a much needed accountability mechanism and greatly enhance regional confidence in human rights and the rule of law.
[2] With the SADC tribunal stripped of its human rights mandate and domestic mechanisms too weak to protect rights, Southern African countries struggled to improve protection of social, economic and political rights over the past year.