Texto Conjuntural: Grandes Lagos #18

Um panorama sobre a migração na República Democrática do Congo a partir dos acontecimentos históricos no país

15/03/2022

Por Maria Luíza

A República Democrática do Congo, um país da África Central, região dos grandes lagos africanos, é o maior país da África subsaariana e segundo maior país da África, atrás apenas da Argélia. A RDC foi colonizada pelos belgas a despeito de uma vontade pessoal de extensão de poderio e território de Leopoldo II. A partir da expansão da França e Inglaterra, a Bélgica se convenceu de que a ocupação e exploração de terras estrangeiras seria essencial para a expansão do país. Sob os comandos do rei Leopoldo II houve exploração do extrativismo do marfim e da borracha com fim lucrativo, o que gerou, por estimativas, a morte de 15 milhões de congoleses. O reinado de Leopoldo II era marcado por intensa exploração da população congolesa, visto que o crescimento econômico era a atividade mais importante, transformando a maioria em mão de obra, as quais sofriam com castigos físicos aplicados para que a produção crescesse cada dia mais e mais (BARBOSA, 2017).

No período em que a atual República Democrática do Congo ainda era uma colônia belga, período este compreendido entre 1885 e 1960, a região recebia, de forma constante, emigrantes, sendo compostos por europeus e por africanos vindos de regiões vizinhas, que buscavam trabalho na indústria mineira ou em atividades de suporte a ela. A urbanização aconteceu de forma mais expressiva no período colonial, período este em que houve a intensa migração da mão de obra desejada (congoleses e estrangeiros) de áreas rurais em direção às áreas urbanas. Porém, em certo momento, a comoção internacional frente às explorações ocorridas naquela época foram tamanhas que Leopoldo II transferiu a posse de sua colônia pessoal, para o Estado Belga, em 1906 (BARBOSA, 2017).

A partir disso, o nome do território congolês mudaria para Congo Belga transferindo sua principal atividade econômica para a exploração de mineral. O solo do país é rico em minerais básicos às indústrias eletrônica, de informática e aeroespacial. Além disso, apresenta reservas relevantes de ouro, diamante, bauxita, prata, platina, chumbo, zinco, carvão e coltan, sendo este último um minério essencial à indústria de telefonia móvel. De acordo com Kabengele Munanga – antropólogo e professor brasileiro-congolês – o Congo está na lista dos dez maiores produtores do mundo em urânio, cobre, manganês e estanho, além de fornecer a maior parte do cobalto usado pela indústria aeronáutica e espacial dos EUA. Portanto, somado a atividade econômica da época e políticas de bem estar social – como rede de ensino básico e técnico, enfermarias públicas e sistema de financiamento habitacional – ocorre, este período, uma atração de emigrantes para o território congolês, trazendo migrantes africanos para trabalhar nas minas, italianos, portugueses e gregos desenvolvendo atividades de comércio e por fim belgas em cargos de gerência (BARBOSA, 2017).

Após 60 anos, a RDC tornou-se oficialmente um país independente quando o governo belga anunciou, no início de 1960, que concederia a independência, no dia 30 de junho de 1960. Entretanto, a despeito da vitória nas negociações pela independência, a incapacidade administrativa gerada pela insuficiência do sistema educacional colonial para os nativos e as divisões ético-regionais fomentadas pelos belgas resultaram em graves conflitos políticos internos. O tumulto político subsequente à independência provocou desalojamentos internos e migrações forçadas. Assim, a independência do Congo trouxe consigo uma crise que abalou a história sucessora do país. Foram três guerras principais (Crise do Congo, 1960-1965; Primeira Guerra do Congo, 1996-1997; e Segunda Guerra do Congo, 1998-2003); duas secundárias (Shaba I, 1977;  Shaba II, 1978); e uma situação atual em que a violência se tornou endêmica (Estado de Violência, desde 2003) (SILVIA, 2011). 

Somado a isto, ao se analisar a trajetória política do país podemos dividir quatro períodos políticos principais: o imediato pós independência, também chamado de Primeira República (1960-1965); o regime de Mobutu Sese Seko, conhecido como Segunda República (1965-1997); o governo de Laurent Kabila (1997-2001); e o governo de Joseph Kabila (2001-…) – sendo que os dois últimos tentaram cumprir a promessa de uma Terceira República (SILVIA, 2011). Na Primeira República, as dinâmicas coloniais de exploração e espoliação das riquezas do país foram mantidas intactas e, devido a isso, a exploração das minas dos belgas, ingleses e franceses se mantiveram sem perdas neste período. Na Segunda República Mobutu instaurou o que o sociólogo estadunidense Peter Evans (1993) apelidou de “Estado predatório”: a máquina estatal zairiana trabalhava para os interesses do ditador e seus aliados, em detrimento do resto da nação (TCHINHAMA, 2017).

“Desde que Joseph Mobutu Sese Seko assumiu o governo do Zaire em 1965, ele e seu círculo íntimo no interior do aparelho de Estado zairiano têm extraído enormes fortunas pessoais das receitas geradas pela exportação da impressionante riqueza mineral do país. Durante estes vinte anos, o PNB per capita do Zaire declinou a uma taxa anual de 2,1 % ao ano, levando o país pouco a pouco para o último lugar na hierarquia mundial das nações e deixando a população do país numa miséria igual ou pior do que a sofrida durante o regime colonial belga. O Zaire é, em suma, um exemplo de manual de um “Estado predatório” no qual a preocupação da classe política com a busca de renda converteu a sociedade em sua presa.” (EVANS, 1993)

Num primeiro momento, o governo de Mobutu conseguiu manter a constância de emigração para o território congolês, visto que havia uma estabilidade econômica, sustentada pela exploração das minas congolesas. Neste período, entre o Congo e a Bélgica mantinha-se um fluxo constante de imigrantes temporários, formado principalmente por estudantes, diplomatas, servidores civis e seus respectivos núcleos familiares, além de turistas. Contudo, já na década de 1970, houve uma diminuição da chegada de emigrantes estrangeiros ao país, visto os acontecimentos da década, como a crise do petróleo, a baixa internacional dos preços das commodities e a crescente insatisfação com Mobutu Sese Seko (TCHINHAMA, 2017).

As décadas de 1980 e 1990 se sucederam a partir de novas conturbações no governo de Mobutu, originadas pela crise econômica que assolou o país na época. O ditador promoveu reformas estruturais junto ao Banco Mundial e ao FMI, porém, no fim, acabou por romper relações com as instituições de Bretton Woods. Ademais, com a queda do muro de Berlim e o enfraquecimento da União Soviética, o ditador perdeu seu apoio político externo, gerando uma revolta política interna extremamente grande e ocasionando um dos episódios mais violentos do governo de Mobutu, trazendo, nesta mesma época, a postulação do Congo de país que mais sofreria com a migração de pessoas por conta da instabilidade política e crise humanitária, inaugurando uma era de imigração em massa da RDC para a Bélgica (TCHINHAMA, 2017).

De acordo com um estudo do Groupe d’Étude de Démographique Appliqué, da Universidade Católica de Louvain, os números nos trazem a realidade da imigração do período de janeiro de 1991 em relação a janeiro de 2006 na então República Democrática do Congo, com um salto de 17.451 para 40.301, representando um boom de 130,94% em 15 anos. Na Bélgica, na data de janeiro de 2008, os congoleses já representavam a terceira maior comunidade no território do país colonizador, o que correspondia a 2,6% do total de emigrantes morando no país europeu. Essa parcela da população é composta majoritariamente por homens que buscam asilo, refúgio e reunião familiar (HONORATO,2019).

Atualmente, o quadro de migração congolesa está direcionado para o território francês, sendo este o destino final mais procurado pela população congolesa que deixa o país. O motivo principal é devido a crise humanitária que acontece no país devido a intensas guerras e instabilidade política que causa um caos comunitário. Hoje, no Congo, a cada 48 segundos uma mulher é vítima de estupro se tornando o campeão mundial neste quesito, provando mais uma vez que não há uma estrutura social cabível de moradia e desenvolvimento para a população congolesa. A estimativa de especialistas é que atualmente o número de imigrantes congoleses no mundo gire em torno de 500 mil e 1 milhão de pessoas; o Estado congolês se refere a um número mais alto ainda: 7 milhões de imigrantes. A maioria deste grupo concentra-se em países vizinhos, como Uganda, Ruanda, Tanzânia e Zâmbia (HONORATO,2019).

De acordo com a Agência da ONU para Refugiados houve cerca de 5 milhões de pessoas deslocadas do território congolês entre o período de 2017 e 2019. Isso retrata um quadro de urgência no país, sendo que as pessoas estão fugindo de suas casas em um ritmo preocupante, à medida que o agravamento da violência destrói vidas e meios de subsistência em todo o país. Apesar do fim da guerra civil em 2003, o país enfrenta constantemente eventos de ataques por grupos milicianos que usam da população contra o governo ou para fins comerciais, como já apresentado acima, o que acaba por gerar uma violência generalizada e uma anarquia permanente. As violações dos direitos humanos ainda são generalizadas e incluem mutilações físicas, assassinatos, violência sexual, prisões arbitrárias e detenções em condições desumanas.

A República Democrática do Congo enfrenta, atualmente, uma crise humanitária que já fez cerca de 6 milhões de vítimas. Apesar da riqueza no solo já apresentada acima no texto, a RDC apresenta um dos maiores índices de pobreza populacional mundial, o que reflete os conflitos históricos que assolaram o desenvolvimento do país e que hoje promovem a corrosão das estruturas básicas de sustentação do território congolês. Há relatos alarmantes sobre os episódios violentos vividos pelos civis congoleses diariamente, como diz Kadima Kabenge, trabalhador que fugiu de ataques na província de Kasai, diz ter visto a morte de sua família por homens armados na região. Ademais, o país também sofre com a entrada constante de emigrantes vindos de regiões vizinhas da África, pessoas vindas do Burundi, República Centro-Africana e Sudão do Sul. 

Sem estruturas básicas sociais e governamentais, o que resta é a ajuda internacional voltada para a proteção dos mais vulneráveis e para fins de fortalecimento da saúde pública. Além da pandemia do COVID-19, a República Democrática do Congo sofre com a epidemia de ebola, e ainda, os ataques milicianos de grupos radicais no Eastern Congo. Todos estes episódios trazem a atenção internacional para o país com atuação direta da Organização das Nações Unidas, da Organização Internacional de Migração e o Save the Children, além de outros órgãos internacionais e a presença da força militar de outros países no território para promover missões de paz.

De acordo com estudos da Organização das Nações Unidas, os crimes cometidos contra os civis na RDC podem ser classificados como crimes contra a humanidade, gerando um senso de urgência com a proteção da população contra ataques de grupos armados e das operações militares frequentes no país (ONU NEWS, 2021). O grupo armado ADF – Forças Militares Aliadas – é, atualmente, o grupo de maior destaque na mídia no que diz respeito a crimes contra civis cometidos em atentados, causando sequestros, estupros, mortes, queimas de casas e vilarejos e incitando deslocamento forçado no continente. O episódio mais recente de ataque deste grupo foi no dia 12 de novembro de 2021, quando o grupo Forças Democráticas Aliadas (ADF) atacou um centro de saúde para se abastecer de produtos farmacêuticos, o que acabou por gerar a morte de cinco civis e vários reféns no hospital (AFP, 2021). 

Após ser vinculado como braço direito do Estado Islâmico (EI) no centro da África a ADF usa frequentemente crianças, mulheres e idosos como escudos humanos de forma a atuarem livremente na região, provocando um risco eminente a vida dos civis que compõem a população da RDC. O grupo já foi responsável pela morte de 849 civis no ano de 2020. (AFP, 2021). As atividades vinculadas ao grupo, portanto, é uma amostra dos episódios frequentes que os congoleses sofrem, além de trazerem consequências negativas diretas para o governo e sua possibilidade de atuação como provedora de recursos sociais à população do país, sendo necessária a emigração constante por parte da população e a intervenção nos assuntos do país.  Além disso, a crise humanitária na República Democrática do Congo foi considerada, pela ONU, como a crise mais longa da África (ONU NEWS, 2016). 

Dito isso, a intervenção de outros países, como o Brasil, é essencial nas Missões de Paz desenvolvidas no território congolês. As relações Brasil-República Democrática do Congo foram retomadas no governo Lula, visando a urgência de um esforço coletivo para a proteção dos direitos civis de crianças, mulheres e jovens (as principais vítimas), junto ao monitoramento de todas as violações de direitos humanos. Também é de assunto internacional a discussão sobre a necessidade da formação de um exército nacional congolês para a consolidação de um Estado soberano. Ademais, visando a soberania e o desenvolvimento da RDC, o Brasil atua, através da FIB (Force Intervention Brigade) e junto do Monusco, com o objetivo de neutralizar os os grupos armados no leste do Congo, tratando-se de um esforço técnico militar (SANTOS, K.; MORAIS, M.; LAGOSTA, P, 2021).

Somado a isso, as medidas buscam incentivar políticas de serviços públicos e gerar um fomento econômico no território congolês, mostrando a capacidade do Brasil em utilizar seus recursos com o objetivo de ajudar o Congo além de intensificar as relações comerciais entre os dois países, de forma a abrir vias para o intercâmbio de informações, pessoas e tecnologias. Ademais, até as últimas estimativas de 2015, foram acolhidos em solo brasileiro 8.863 refugiados reconhecidos, destes sendo 968 vindos da República Democrática do Congo, o que faz do Brasil um país receptor de imigrantes congoleses que saem do seu território pelos mais diversos motivos de perseguição (SANTOS, K.; MORAIS, M.; LAGOSTA, P, 2021).

Portanto, é perceptível que a República Democrática do Congo atravessa diversos problemas advindos da instabilidade política da região – proporcionada pela história de colonização e desenvolvimento do país – e dos ataques frequentes dos grupos de milícias estruturando, a partir desses episódios, uma região extremamente pobre e insegura para os civis que vivem no país. Nota-se, também, que a região, mesmo que por um período tenha sido pólo atrator de indivíduos pela sua atividade comercial, atualmente, se encontra como um polo dissipador de pessoas, com um alto número de congoleses ocupantes de países vizinhos ou países de outros continentes. Dito isso, é fundamental a presença internacional no território, seja por meio de atividades promovidas pelas organizações internacionais, seja através de missões de paz, com ajuda de outros países a fim de garantir a proteção dos direitos da comunidade congolesa. 

Foto: UN News

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AFP. Exército da RDC anuncia libertação de reféns sequestrados por grupo ligado ao EI. IstoÉDinheiro, 2021. Disponível em: <https://www.istoedinheiro.com.br/exercito-da-rdc-anuncia-libertacao-de-refens-sequestrados-por-grupo-ligado-ao-ei/&gt;. Acesso em: 13 nov. 2021. 

AFP. Grupo armado mata 5 pessoas e faz vários reféns em hospital na RD do Congo. Estado de Minas Internacional, 2021. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2021/11/12/interna_internacional,1322427/grupo-armado-mata-5-pessoas-e-faz-varios-refens-em-hospital-na-rd-do-congo.shtml&gt;. Acesso em: 01 nov. 2021. 

BARBOSA, Victor Tavares. A República Democrática do Congo e os conflitos na região dos Grandes Lagos. NEARI EM REVISTA, v. 3, n. 4, 2017.

Evans, P. (1993), “O Estado como problema e solução”, Lua Nova, n. 28-29, pp. 107- 157. 

HONORATO, Felipe Antonio. República Democrática do Congo: Um histórico migratório. Congresso Latino-americano de Ciência Política (ALACIP), 2019. Disponível em: <https://alacip.org/cong19/8-antonio-19.pdf&gt;. Acesso em: 01 nov. 2021. 

ONU NEWS. ONU diz que ataques contra civis na RD Congo podem ser crimes contra a humanidade. Nações Unidas, 2021. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2021/02/1740432&gt;. Acesso em: 01 nov. 2021. 

SANTOS, K.; MORAIS, M.; LAGOSTA, P. Crise no Congo e a participação do Brasil. Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil, 2021. Disponível em: <https://opeb.org/2021/05/07/crise-no-congo-e-a-participacao-do-brasil/&gt;. Acesso em: 01 nov. 2021. 

SILVA, Igor Castellano Da. Guerra e construção do Estado na Rep. Democrática do Congo: a definição militar do conflito como pré-condição para a paz. 2011. 178 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.

TCHINHAMA, Laurindo Paulo Ribeiro et al. Peacebuilding e democratização: uma análise da construção da paz na república democrática do Congo. 2017.

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