REFUGIADOS LGBTI NO QUÊNIA
15/03/2022
Por Beatrice Ássimos Taveira
1. Introdução
No continente africano, especialmente nos países em que o conservadorismo é predominante, há um déficit nas leis de proteção às minorias sociais. Em alguns casos, a própria existência desses grupos de pessoas é criminalizada e ameaçada. O leste africano, por exemplo, é conhecido por suas leis particularmente mais severas a respeito da população LGBTI, a qual corre risco iminente por apenas estar nos territórios em que as leis são aplicadas, como Uganda e Tanzânia. Assim, as pessoas que fazem parte dessas minorias se vêem obrigadas a fugir, buscando asilo em países vizinhos – e muitas vezes igualmente perigosos -, temendo pela própria vida (KOKO et al., 2018). Com o aumento das perseguições baseadas em identidade de gênero e orientação sexual, observa-se um intenso fluxo de migração e pedidos de asilo baseados nesse tipo de discriminação. O Quênia, apesar de seu próprio histórico de legislação “anti-queer”, dispõe de um ativismo político também relevante, e por isso encontra-se como um alvo desses pedidos de refúgio (PINCOCK, 2021).
Antes de mais nada, é necessário notar o uso de duas terminologias. A primeira, “LGBTI”, é a mais comum e mais utilizada no ocidente. Além dela, também há a “SOGIE”, uma abreviação para orientação sexual, identidade e expressão de gênero. De forma simplificada, pode ser utilizada como sinônimo para “LGBTI”, sendo adotada, inclusive, pela ONU (CHONG, 2016). Ambas aparecerão ao longo do texto.
2. Repeal162 e a população LGBTI no Quênia
Para a compreensão do cenário dos refugiados LGBT no Quênia, é necessário, primeiro, entender como se dá a relação da sociedade queniana com a comunidade LGBTI. O Quênia, seguindo uma tendência da região leste da África, ainda persiste em uma legislação restritiva que reflete as crenças conservadoras da sociedade civil. Um aspecto marcante da discussão LGBTI queniana é o embate há anos existente entre duas frentes de interesses distintos, as quais discutem a legalidade das relações homoafetivas no Quênia.
O Código Penal do Quênia afirma que qualquer pessoa que tenha “ações carnais contra a ordem da natureza”, ou que permita que outra pessoa tenha tais ações, comete um crime passível de até 14 anos de prisão (CÓDIGO PENAL DO QUÊNIA, 2010). Assim, tornam-se ilegais e punidas as relações homoafetivas em território queniano. Em vista disso, em 2016, duas petições foram feitas por entidades que advogam por direitos LGBTQIA+ no Quênia: National Gay & Lesbian Human Rights Commission, Gay and Lesbian Coalition of Kenya, e NYARVER Network. Dessa forma, uma das petições chegou à Suprema Corte queniana, dando origem à mobilização #Repeal162, movimento que conta com grande apoio, principalmente nas redes sociais, e que luta pelo fim da seção 162. Partindo de dados cedidos pelas organizações e pelo testemunho dos requerentes presentes, a seção 162 foi apresentada como uma violação a diversos artigos da Constituição do país. É o caso do artigo 27º, que garante a liberdade de expressão e proíbe qualquer forma de discriminação, e do artigo 2º, que garante o respeito aos direitos estabelecidos pelo direito internacional (QUÊNIA, 2010). Este, especificamente, se refere a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, também conhecida como Carta de Banjul (UNIÃO AFRICANA, 1981), documento produzido pela União Africana que proíbe a violação de direitos humanos pelos países signatários. Além desses argumentos, os requerentes argumentaram, ainda, que a lei seria ambígua, justamente pela falta de especificidade do que significaria “atos carnais contra a natureza” (KELIN KENYA, 2019).
A mobilização de partes da sociedade civil no movimento #Repeal162 é um passo de extrema importância para um Quênia marcado pela discriminação. Apesar de importantes ações terem sido tomadas nos últimos anos, especialmente em relação ao reconhecimento de identidade de gênero, a legislação ainda permanece retrógrada, como um reflexo das práticas discriminatórias da sociedade queniana. Em um país em que a população LGBTQIA+ sofre constantemente com perseguições, ostracismo, invalidação e criminalização, a adesão ao movimento significava uma possível virada na conjuntura atual (OUTRIGHT ACTION INTERNATIONAL, 2021). Entretanto, em 2019, o pedido de alteração da seção 162 foi negado pela Suprema Corte. Negando que a lei seja ambígua e que viole a Constituição, o Estado do Quênia, juntamente com o Kenya Christian Professional Forum, a Ummah Foundation e o político conservador Irungu Kangat, alega ainda que a descriminalização de relações homossexuais levaria à legalização do casamento entre mesmo sexo, desrespeitando os valores quenianos (KELIN KENYA, 2019). Mesmo com a “derrota” na Suprema Corte, o movimento #Repeal162 ainda persiste e busca outros meios legais de alterar a seção 162. Aos poucos, a mobilização está ganhando mais força e destaque internacionalmente, permitindo a visualização de um futuro promissor para a população LGBTI no Quênia.
O caso queniano traz uma interessante perspectiva para os direitos da comunidade LGBTI em países não-ocidentais. De forma geral, existem no continente africano diferenças na percepção da sexualidade e de gênero em seus papéis, o que influencia diretamente nas questões LGBTI nesses países. A religião, também, possui um papel fundamental na construção da opinião da sociedade a respeito de minorias – é o caso do Quênia, no qual a maioria cristã foi justamente a contrária ao #Repeal162 (KELIN KENYA, 2019). A situação é, portanto, complexa e repleta de nuances, que vão desde questões culturais e religiosas até problemáticas decoloniais, as quais refletem diretamente na condição de refugiados LGBTI que buscam asilo no país.
3. Refugiados LGBTI no Quênia: uma análise interseccional
Mesmo com a conjuntura que a comunidade LGBTI enfrenta no Quênia, o país ainda é um dos principais destinos de refugiados LGBTI no leste africano, os quais são, em sua maioria, advindos da Uganda. Normalmente, os indivíduos que atravessam a fronteira são enviados para o Campo Kakuma, um dos maiores campos de refugiados no Quênia. Entretanto, em Kakuma, existe um grande déficit de atendimento das necessidades específicas desse grupo de refugiados – como escassez de exames para IST´s (Infecções Sexualmente Transmissíveis), falta de controle hormonal para indivíduos transexuais e discriminação dos próprios refugiados -, e por isso muitos acabam sendo transferidos para Nairóbi (PINCOCK, 2021). Kate Pincock, pesquisadora na questão dos refugiados no Quênia, traz em seu artigo “UNHCR and LGBTI refugees in Kenya: the limits of ‘protection’” (ACNUR e refugiados LGBTI no Quênia: os limites da “proteção”, em tradução livre) depoimentos de refugiados LGBTI residentes em Nairóbi ou no Campo Kakuma.
Em seu trabalho, Pincock mostra como a situação dos refugiados LGBTI é delicada, indo desde atrasos na emissão do registro de refugiados até violência explícita e escancarada de outros refugiados e comunidade local. A capital, Nairóbi, é extremamente perigosa para a população LGBTI, e por isso muitos refugiados preferem permanecer no Campo Kakuma a enfrentar a violência urbana e o desamparo existentes na capital. O ACNUR (Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), em 2019, financiou uma casa de apoio aos refugiados LGBTI na cidade, mas, com a decisão da Suprema Corte na seção 162 do Código Penal naquele mesmo ano, o governo queniano ordenou que os residentes deveriam ser despejados. Pincock ainda explicita que, quando esses refugiados desalojados contactam o ACNUR, eles são orientados a seguir para Kakuma, o mesmo campo que antes tinham sido transferidos por falta de segurança e acesso a ajuda médica de qualidade.
Inicialmente, o ACNUR tentou conectar os refugiados LGBTI aos grupos de direito civil quenianos. Porém, os refugiados entendem a ação desses grupos como irrelevantes para suas causas: enquanto os ativistas buscam direitos igualitários para cidadão quenianos, os refugiados preferem lutar pelo reassentamento fora do Quênia ao invés de buscar meios seguros de sobreviver dentro do país. Assim, os que buscam asilo preferem procurar por conta própria a reafirmação de sua condição SOGIE e as possibilidades de sair do continente africano (PINCOCK, 2021).
Apesar das dificuldades explícitas anteriormente citadas, existem detalhes técnicos que servem de empecilho para uma ação efetiva na questão dos refugiados LGBTI no Quênia. Ao fazer uma análise partindo de uma perspectiva interseccional – “busca das formas em que forças sociais interagem para formar uma posição social específica” (KOKO et al, 2018), encontra-se três aspectos principais: a complexidade anticategórica, a abordagem intracategórica e a abordagem intercategórica. Essa discussão teórica é abordada por Guillain Koko, Surya Monro e Kate Smith no trabalho “Lesbian, gay, bisexual, transgender, queer (LGBTQ) forced migrants and asylum seekers: multiple discriminations”, e é de grande importância para compreender a complexidade da conjuntura.
A complexidade anticategórica consiste no fato de que, para conseguir a documentação de asilo, o refugiado deve provar que sofre perseguição dentro dos parâmetros do ACNUR e dos Princípios de Yogyakarta (esse parâmetros serão abordados com mais profundiadade mais a frente). Dessa forma, existe a necessidade de categorização e enquadramento das identidades individuais por necessidades burocráticas, mas estas podem não ser interessantes ou simples para alguns dos refugiados (KOKO et al, 2018). Como escreveram Bennett e Thomas (2014), “(…) a exigência de comportamento e atividades sexuais identificáveis deslegitimiza pedidos de asilo de indivíduos LGBTQ para proteção”.[1]
A abordagem intracategórica, por sua vez, diz que os refugiados LGBTI sofrem de múltiplas marginalizações advindas de forças opressivas diferentes, como pobreza, gênero e etnia. Essas marginalizações são expressas através de perseguições e atos discriminatórios, sendo de caráter institucional. Um exemplo claro são as discriminações advindas do fato de um indivíduo ser um refugiado, mas também parte da comunidade LGBTI. De forma paralela, a abordagem intercategórica traz uma perspectiva de que essas diferenças e nuances de marginalização atuam para distribuir recursos de poder e assistência de forma desigual. Assim, essas múltiplas marginalizações dificultam o trabalho de resolução da problemática e servem de empecilho para a ação de diversos órgãos, como é o caso do ACNUR (KOKO et al, 2018). A seguir, será abordado de forma específica como se dá o trabalho do ACNUR no Quênia.
- O papel do ACNUR
O ACNUR apoia-se na Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 para descrever como deve ser o tratamento dado aos refugiados. Desde sua criação, o órgão trabalha em parceria com os Estados procurados para o refúgio, seguindo as diretrizes dessa mesma Convenção (ACNUR, 2002). No ano de 2017, o ACNUR adotou novas diretrizes para direitos humanos no contexto de orientação sexual e identidade de gênero, expressas nos Princípios de Yogyakarta. Anos mais tarde, em 2012, publica suas próprias orientações sobre refúgio, e nesse documento reconhece as dificuldades relacionadas ao refúgio ligado ao status SOGIE. Contudo, essas novas diretrizes não abordam as possíveis marginalizações do grupo por características sociais que se sobrepõem, como gênero, condição social e etnia (PINCOCK, 2021). Em outras palavras, o ACNUR desconsidera as interseccionalidades presentes na condição de refúgio LGBTI.
No caso do Quênia, o ACNUR enfrenta um problema ainda maior; suas diretrizes vão de encontro com as leis locais: o governo queniano é conservador em relação as minorias sexuais, criminalizando sua existência. Além disso, este tem intervido cada vez mais na questão dos refugiados, assumindo o protagonismo, outrora pertencente ao Alto-Comissariado (PINCOCK, 2021). Essa conjuntura, por sua vez, é de tensão pois fere o compromisso do órgão de respeitar as leis locais (KINCHIN, 2016). Além disso, um dos maiores impedimentos do ACNUR é o próprio conceito de ajuda humanitária em si: as relações de poder envolvidas nesse processo deturpam a ideia de proteção como um bem fundamental (SMIRL, 2015). Dessa forma, “proteção” não é percebida como necessária, mas como um ato de benevolênica; é determinada partindo de um pressuposto de como aqueles que a recebem devem se comportar. Essa ideia se sustenta na imagem vitimista do refugiado, como um ser vulnerável, despolitizado e irracional (PINCOCK, 2021). Assim, quando o requerente de asilo prefere buscar o refúgio pro conta própria, dispensando – e sendo crítico à – a ajuda do ACNUR, o órgão perde o protagonismo de ação, logo, seu poder de intervir.
- Considerações Finais
A situação dos refugiados LGBTI encontra-se, dessa forma, em um impasse. De um lado, o governo queniano, o qual mantém suas políticas de discriminação enquanto trava uma batalha jurídica contra os ativistas do #Repeal162. Do outro, o ACNUR, cuja ação vem perdendo o protagonismo tanto pelos dilemas e déficits em suas normas de ação – como é o caso da sua relação espinhosa com o governo do Quênia, ou a incapacidade de atender às problemáticas interseccionais características do tema -, quanto pelas suas próprias questões institucionais, como a natureza da ajuda humanitária e a dinâmica dos interesses de poder. Dessa forma, a população refugiada LGBTI permanece sem saída, tendo sua luta descredibilizada e sua voz silenciada pelas tecnicidades jurídicas dos que deveriam por eles zelar.
Foto: BBC
Referências
ACNUR,. Protecting Refugees: questions and answers, Booklets and Brochures, 1 fev. 2002. Disponível em: <https://www.unhcr.org/hk/wp-content/uploads/sites/13/2016/04/FAQ-ahout-Protecting-Refugees.pdf>. Acesso em: 13 nov. 2021.
BENNETT, Claire; THOMAS, Felicity. Seeking asylum in the UK: lesbian perspectives. 2014. 4 f. Tese (Doutorado), Universidade de Sussex, Brighton, 2014. Disponível em: <https://www.fmreview.org/sogi/bennett-thomas>. Acesso em: 13 nov. 2021.
CHONG, Si Min. How to explain ‘SOGIE’ to newbies. Disponível em: <https://be-inclusive.com/newest-posts/2016/4/13/how-to-explain-sogie-to-newbies>. Acesso em: 13 nov. 2021.
CÓDIGO PENAL DO QUÊNIA, de 2010. Nairóbi: National Council For Law Reporting With The Authority Of The Attorney-General, 2012. Disponível em: <https://www.ilo.org/dyn/natlex/docs/ELECTRONIC/28595/115477/F-857725769/KEN28595.pdf>. Acesso em: 13 nov. 2021.
KELIN KENYA (Quênia). Justice Denied: no to #repeal162. 2019. Disponível em: <https://www.kelinkenya.org/wp-content/uploads/2019/06/Justice-Denied-No-to-Repeal-162.pdf>. Acesso em: 13 nov. 2021.
KINCHIN, N. The implied human rights obligations of UNHCR. International Journal of Refugee Law., V.28, p. 251–275, 2006.
KOKO, Guillain et al. Lesbian, gay, bisexual, transgender, queer (LGBTQ) forced migrants and asylum seekers: multiple discriminations. In: MATEBENI, Zethu; MONRO, Surya; REDDY, Vasu (ed.1). Queer in Africa: LGBTQI identities, citizenship, and activism. Routledge, 2018. Cap. 9. p. 158-177.
OUTRIGHT ACTION INTERNATIONAL. Kenya at a Glance. Disponível em: <https://outrightinternational.org/region/kenya>. Acesso em: 12 nov. 2021.
PINCOCK, Kate. UNHCR and LGBTI refugees in Kenya: the limits of “protection”. Disasters, [S.L.], v. 45, n. 4, p. 844-864, 24 maio 2021. Disponível em: <https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/disa.12447>. Acesso em: 10 maio 2021.
QUÊNIA. Constituição (2010). Nairóbi, 2010. Disponível em: <http://www.kenyalaw.org:8181/exist/kenyalex/actview.xql?actid=Const2010>. Acesso em: 12 nov. 2021.
SMIRL, Lisa. Spaces of Aid: How Cars, Compounds and Hotels Shape Humanitarianism. Journal of International Development, Londres, v. 28, n. 6, p. 1009-1010, 5 ago. 2016. Disponível em: <https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1002/jid.3220>. Acesso em: 13 nov. 2021.
UNIÃO AFRICANA. Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, 1981. Disponível em: <https://www.achpr.org/pr_legalinstruments/detail?id=49>. Acesso em: 12 de nov. de 2021.
[1] “(…) the requirement of identifiable sexual activity and behavior has delegitimized LGBTQ asylum claims for protection.”