Texto Conjuntural África Austral #22 – Refugiados LGBTI+ e a visibilidade queer na África do Sul pós-apartheid: a violência estrutural e o papel do ACNUR

Por Beatrice Ássimos

O refúgio LGBTI+ na África do Sul

No continente africano, especialmente nos países da região leste, como Tanzânia, Quênia e Nigéria, as leis que criminalizam a existência de populações LGBTI+ são particularmente severas. No caso do Quênia, por exemplo, o ato de ter relações carnais com alguém do mesmo sexo é punido com até 14 anos de prisão (CÓDIGO PENAL DO QUÊNIA, 2010). Ainda assim, o país é destino de solicitações de refúgio LGBTI+, principalmente por já receber um grande contingente de refugiados, em sua maioria da Uganda. Entretanto, as más-condições enfrentadas por esses refugiados, os quais sofrem perseguições pela legislação local, violências generalizadas por parte de cidadãos quenianos, funcionários dos campos, equipe médica, ou até mesmo entre os próprios refugiados, tornam o Quênia um destino pouco seguro dentro do continente africano. Dessa forma, esses refugiados são expostos às mais diversas formas de violência devido a falhas estruturais e normativas, tanto do Estado queniano, quanto do próprio ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) (ÁSSIMOS, 2022). Nesse sentido, a África do Sul surge como uma boa opção de refúgio, pois além de também receber uma grande quantidade de refugiados de diversas partes do continente, também possui leis mais progressistas no que se refere a minorias sociais (KOKO et al, 2018).

A África do Sul possui um papel de destaque mundial em relação à proteção de pessoas LGBTI+, principalmente por ser o primeiro país no mundo a garantir constitucionalmente a não-discriminação por orientação sexual, em 1996, durante o período pós-apartheid (GUNKEL, 2010). Além disso, essa mesma constituição possui procedimentos específicos relacionados a asilo de pessoas, os quais beneficiam diretamente aos refugiados LGBTI+. Entre esses procedimentos, destaca-se o reconhecimento de casamentos homossexuais, além de reconhecer a existência de perseguição por “grupo social”, incluindo portanto a perseguição por orientação sexual ou identidade de gênero. Além disso, a África do Sul tem facilitado o processo de requerimento de asilo, como a concessão de refúgio por motivos de perseguição e a adoção do princípio de non-refoulement, no qual os requerentes de asilo são deportados apenas em circunstâncias extremas (KOKO et al, 2018). O fato das autoridades sul-africanas normalmente não exigirem passaporte ou visto de requerentes de asilo também é um diferencial (KOKO et al, 2018). Esses detalhes fazem grande diferença para esses refugiados, já que permitem o reconhecimento de seu status de refúgio frente a legislação sul-africana, além de, em teoria, facilitarem todo o processo de requerimento de asilo.

Entretanto, apesar do avanço e do pioneirismo do país em relação à população LGBTI+, o processo burocrático de refúgio dessa população ainda é defasado. De fato, diversos relatórios mostram que a África do Sul tem enfrentado sérios problemas ao longo dos últimos anos, tendo falhado em oferecer asilo para refugiados LGBTI+ (PASSOP, 2012). Muitas dessas falhas resultam de problemas de instâncias internacionais, ligados a questões de organismos internacionais, como é o caso do ACNUR. São esses problemas que serão discutidos a seguir.

Imagem 1: Refugiados LGBT do Sudão do Sul, Uganda e República Democrática do Congo protestam para exigir proteção como refugiados

Fonte: CREDIT: AFP

Refúgio LGBTI+ e o ACNUR

Os pedidos de asilo por perseguição baseada em orientação e identidade sexual são reconhecidos pelo ACNUR, já que a organização se baseia na Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 (ACNUR, 2002), tendo, em 2017, passado a adotar os princípios de Direitos Humanos em relação a minorias sexuais expressos nos Princípios de Yogyakarta. Suas diretrizes são, então, atualizadas para contemplar o refúgio de pessoas LGBTI+, e nesse sentido a organização reconhece as dificuldades enfrentadas por esse grupo específico durante os requerimentos de asilo (PINCOCK, 2021). Ainda assim, os procedimentos adotados pelo ACNUR não levam em consideração as diferentes marginalizações que esse grupo pode vir a enfrentar, como o racismo, a xenofobia e a misoginia, e como essas relações de interseccionalidade podem afetar o refúgio como um todo (ÁSSIMOS, 2022).

O problema, apesar das novas diretrizes, ainda perpassa por vácuos procedimentais no processo de reconhecimento dos pedidos de asilo, situação a qual se faz necessária uma discussão a respeito das nuances dos procedimentos de reconhecimento de refúgio, além do papel desempenhado pelos Estados nessas questões procedimentais (SCHETTINI, 2021). Um dos principais problemas encontrados é a falta de documentação: para se provar a relação de cônjuges, por exemplo, são necessárias evidências de uma relação estável por pelo menos cinco anos, e a depender do país de origem do requerente, essa documentação é praticamente impossível de se obter (ILGA EUROPE, 2014). Além disso, para a aprovação do pedido de asilo é necessário provar que o requerente realmente faz parte do grupo perseguido (ILGA EUROPE, 2014). Como a identidade de gênero e a orientação sexual são aspectos subjetivos, a caracterização desses indivíduos como pertencentes ou não à comunidade LGBTI+ acaba recaindo a estereótipos datados e de pouca aplicação na realidade. Levando em consideração esses problemas, mesmo que um requerente consiga provar ser pertencente a uma minoria sexual, ainda assim pode haver recusa de refúgio sob a prerrogativa de discrição, na qual argumenta-se que, caso o indivíduo consiga esconder sua orientação sexual ou identidade de gênero, este não correria riscos de perseguição (ILGA EUROPE, 2014; KOKO et al, 2018). Dessa forma, essas e outras questões procedimentais dificultam de forma substancial o processo, e interferem diretamente na efetividade e capacidade de agência de organizações como o ACNUR.

Visibilidade LGBTI+ e o recorte racial na África do Sul

Como foi dito anteriormente, há um vácuo de procedimentos que causa problemas ao processo de refúgio da população LGBTI+ perseguida. É importante notar, ainda, que essas deficiências são observadas em diversas partes do mundo, e o que diferencia o caso sul-africano é justamente a forma como as características da população LGBTI+ no país interagem com os aspectos normativos apresentados anteriormente. No trabalho “Queer(y)ing Freedom: Black Queer Visibilities in Postapartheid South Africa” (“Liberdade Queer: Visibilidade Preta e Queer no Pós-Apartheid da África do Sul, tradução nossa), Xavier Livermon (2012) busca entender de que forma a construção do Estado sul-africano em um contexto pós-apartheid influencia na visibilidade de pessoas LGBTI+ racializadas. Partindo do pressuposto de que visibilidade é pertencimento, visto que a existência de aparatos legais anti-discriminatórios não necessariamente implica em uma sociedade livre de preconceito, Livermon (2012) argumenta que, para possibilitar a própria visibilidade dentro da sociedade sul-africana, a população LGBTI+ racializada quebra noções heteronormativas atreladas a negritude de forma proposital. A Constituição da África do Sul de 1996 diz:

“Não é permitido ao Estado discriminar, diretamente ou indiretamente, de forma injusta qualquer um em uma ou mais esferas, incluindo raça, gênero, sexo, gravidez, estado civil, origem étnica ou social, cor, orientação sexual, idade, deficiência, religião, consciência, crença, cultura, idioma e local de nascimento.” (ÁFRICA DO SUL, 1996, p. 8, tradução nossa)

A lei sul-africana, portanto, garante a não-discriminação de minorias sexuais. Entretanto, como foi dito anteriormente, essa garantia formal não é vista na prática: não são incomuns os casos de estupros, espancamentos, ou até mesmo assassinatos de pessoas LGBTI+ no país, ataques estes de cunho lgbtfóbico e majoritariamente direcionados a mulheres lésbicas pretas (REID; DIRSUWEIT, 2002). Há também um caso emblemático do Conselho de Líderes Tradicionais Sul-Africanos, os quais definiram a homossexualidade como “não-africana”, ao dizer que práticas homossexuais são incompatíveis à “cultura africana” em um debate sobre casamentos homoafetivos (REID, 2010). Esses exemplos mostram que, por mais que a igualdade formal da população LGBTI+ e seu direito a não-discriminação sejam constitucionalmente assegurados, na prática a sociedade sul-africana não compartilha desses ideais. É comum, ainda, que os indivíduos mais afetados por esse descolamento entre normas e sociedade sejam aqueles com pouco ou nenhum capital econômico ou social, ou seja, as populações marginalizadas. É nesse contexto de insegurança em meio a sociedade que a população LGBTI+ sul-africana busca a liberdade através da visibilidade, ou seja, ela tenta cada vez mais se inserir nos espaços e ocupá-los. A questão é que tal visibilidade é custosa, visto que coloca esses indivíduos em uma posição de vulnerabilidade (LIVERMON, 2012).

Entretanto, afirmar que essa vulnerabilidade é a mesma para toda a população LGBTI+ é um equívoco: de fato, essa violência da sociedade sul-africana contra a comunidade LGBTI+ é direcionada de forma desproporcional aos corpos racializados, especialmente em um contexto pós-apartheid (LIVERMON, 2012). Ao fazer um recorte de raça, percebe-se que, enquanto os corpos pretos e LGBTI+ são vistos como ameaça à cultura e tradição africanas, vende-se a imagem de uma África do Sul progressista e queer-friendly para o turista LGBTI+ e branco. Nesse sentido, ao buscarem a visibilidade dentro desse contexto, pessoas LGBTI+ racializadas não buscam apenas a aceitação e o pertencimento, mas também desafiam as noções de “cultura africana” e testam os limites do Estado sul-africano pós-apartheid ao questionar essas noções heteronormativas atreladas à negritude (LIVERMON, 2012).

Conclusão: complexidades categóricas e a violência estrutural

A complexidade da conjuntura é expressa na relação de múltiplas marginalizações sofridas pela população refugiada LGBTI+ na África do Sul. Entrando na discussão trazida por Koko et al (2018) a respeito da complexidade intracategórica, ou seja, as múltiplas opressões advindas de forças opressivas diferentes, como pobreza, gênero e etnia, é evidente que os requerentes de asilo na África do Sul por perseguição baseada em orientação sexual ou identidade de gênero sofrem violências constantes não só por serem LGBTI+ e refugiados; mas também, em um contexto de um Estado marcado pelo apartheid, essas violências também são motivadas por misoginia e, principalmente, racismo. E são essas interseccionalidades que geram, por sua vez, uma complexidade inter-categórica, ou seja, a distribuição desigual de visibilidade entre a própria população LGBTI+ refugiada (KOKO et al, 2018), discussão evidenciada por Livermon (2012). Nesse sentido, percebe-se que esse contexto de múltiplas marginalizações, somado aos vácuos procedimentais das organizações internacionais ao lidar com essas interseccionalidades, gera um ambiente pouco seguro para os refugiados LGBTI+ na África do Sul, pois estes continuam sofrendo de violência e perseguição mesmo em asilo. A diferença é que, enquanto em seus países de origem a perseguição é formal e visível, na África do Sul a origem dessas violência é estrutural.

Referências Bibliográficas

ACNUR. Protecting Refugees: questions and answers, Booklets and Brochures, 1 fev. 2002. Disponível em: <https://www.unhcr.org/hk/wp-content/uploads/sites/13/2016/04/FAQ-ahout-Protecting-Refugees.pdf>. Acesso em: 13 nov. 2021.

ÁFRICA DO SUL. [Constituição (1996)]. Constitution of the Republic of South Africa. [S. l.: s. n.], 1996. Disponível em: https://www.gov.za/sites/default/files/images/a108-96.pdf. Acesso em: 24 set. 2022.

ÁSSIMOS, Beatrice. Refugiados LGBTI+ no Quênia. Grupo de Pesquisa das Relações Internacionais do Atlântico Sul, [S. l.], 15 mar. 2022. Disponível em: https://grupoatlanticosul.com/2022/03/15/texto-conjuntural-grandes-lagos-97/. Acesso em: 16 set. 2022.

CÓDIGO PENAL DO QUÊNIA, de 2010. Nairóbi: National Council For Law Reporting With The Authority Of The Attorney-General, 2012. Disponível em: https://www.ilo.org/dyn/natlex/docs/ELECTRONIC/28595/115477/F-857725769/KEN28595.pdf. Acesso em: 13 nov. 2021.

GUNKEL, Henriette. The Cultural Politics of Female Sexuality in South Africa. [S. l.]: Routledge, 2010.

ILGA EUROPE. Good practices related to LGBTI+ asylum applicants in Europe. Set, 2014. Disponível em: https://www.ilga-europe.org/report/good-practices-related-to-LGBTI+-asylum-applicants-in-europe/. Acesso em: 17 set. 2022.

KOKO, Guillain et al. Lesbian, gay, bisexual, transgender, queer (LGBTQ) forced migrants and asylum seekers: multiple discriminations. In: MATEBENI, Zethu; MONRO, Surya; REDDY, Vasu (ed.1). Queer in Africa: LGBTQI identities, citizenship, and activism. Routledge, 2018. Cap. 9. p. 158-177.

LIVERMON, Xavier. Queer(y)ing Freedom: Black Queer Visibilities in Postapartheid South Africa. GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, [s. l.], v. 18, n. 2-3, p. 297-323, 1 jun. 2012. Disponível em: https://read.dukeupress.edu/glq/article-abstract/18/2-3/297/34812/Queer-y-ing-FreedomBlack-Queer-Visibilities-in?redirectedFrom=fulltext. Acesso em: 23 set. 2022.

PASSOP (People Against Suffering, Oppression and Poverty). A DREAM DEFERRED: Is the Equality Clause in the South African Constitution’s Bill of Rights (1996) just a far-off hope for LGBTI+ Asylum Seekers and Refugees? África do Sul: PASSOP, 2012. Disponível em: https://www.passop.co.za/wp-content/uploads/2012/06/1.-PASSOP-LGBTI+-REPORT-A-Dream-Deferred.pdf. Acesso em: 16 set. 2022.

PINCOCK, Kate. UNHCR and LGBTI+ refugees in Kenya: the limits of “protection”. Disasters, [S.L.], v. 45, n. 4, p. 844-864, 24 maio 2021.

REID, Graeme; DIRSUWEIT, Teresa. Understanding systemic violence: Homophobic attacks in Johannesburg and its surrounds. Urban Forum, [s. l.], v. 13, n. 3, p. 99-126, 1 Jul. 2002.

REID, Graeme. The Canary in the Constitution: Same Sex Equality in the Public Sphere. Social Dynamics,  [s. l.], v. 36, n.1, p. 38-51, 2010.

SCHETTINI, Giulia. Guia de Estudos ACNUR (2021): A VIOLÊNCIA E A PERSEGUIÇÃO BASEADAS NA ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO E OS “REFUGIADOS LGBTI++”. In: PUC MINAS (Belo Horizonte). MINIONU. [S. l.], 2021. Disponível em: https://www.pucminas.br/minionu/Documents/GuiaEstudosACNUR.pdf. Acesso em: 16 set. 2022.

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